15/12/2004 - 10:00
O artista é calmo como sua música. Quando toca com elegância as teclas do piano, José Miguel Wisnik lembra o músico erudito que realmente é. Quando fala sobre suas músicas e as dos outros, o faz com a malícia característica do professor que também é. Sentado no palco, contempla extasiado Ná Ozzetti ou Jussara Silveira cantando suas músicas. E é contemplado pelo público como o astro pop que está correndo o risco de se tornar.
Fãs ilustres não lhe faltam. Do topo da cadeia alimentar do prestígio, Caetano Veloso dedicou-lhe Verdade tropical. Wisnik atribui isso ao fato de ter lido o texto do livro do baiano no momento em que estava sendo escrito, funcionando como um interlocutor favorável. Agora, poucos meses após lançar seu terceiro disco, Pérola aos poucos (Maiango), que desde que saiu tornou-se o disco de cabeceira de Djavan, o professor de literatura de 56 anos, nascido em São Vicente, São Paulo, torna-se ainda mais acessível ao grande público. Acaba de chegar às livrarias o songbook José Miguel Wisnik – livro de partituras (Gryphus, 152 págs., R$ 54), com 33 canções transcritas pelo violonista mineiro Kristoff Silva, e Sem receita – ensaios e canções (Publifolha, 556 págs., R$ 69), título tirado de uma parceria com a poeta Alice Ruiz, organizado por Arthur Nestrovsky, a primeira reunião de suas idéias desde O som e o sentido – uma outra história da música (Companhia das Letras, 1989). O segundo livro traz textos já publicados separadamente, com ênfase em literatura e música, letras dos seus três discos – os outros são José Miguel Wisnik, de 1993, e São Paulo Rio, de 2000 –, o poema O fim de uma hera e uma longa entrevista concedida a Nestrovsky, Luiz Tatit, também professor e músico, fundador do Grupo Rumo, e João Camillo Penna, professor de literatura da UFRJ. A edição traz ainda um CD com as sete músicas de Nazareth, trilha sonora para o balé do grupo Corpo, de 1993.
Para Tatit, “Wisnik é a mais completa tradução do cancionista-pensador, esse personagem que só se encontra na cultura brasileira”, responsável por “melodias sensíveis que antecipam a força emocional da letra”. No que concorda Ná Ozzetti, também do Rumo, para quem as canções de “Zé” possuem “uma beleza diferente, vinda de caminhos singulares, lindas, profundas, transcendentais, o sonho e o prazer de qualquer intérprete, e dos ouvintes, é claro, pelas possibilidades de sobra que oferecem”. Seus ensaios trazem, ainda segundo Tatit, “as teses mais interessantes e originais sobre a identidade e a vocação do nosso povo”. Como em Machado maxixe: o caso Pestana, que abre Sem receita, em que analisa a música brasileira a partir dos personagens dos contos de Machado de Assis, O machete, publicado em 1878, e Um homem célebre, de 1896. O primeiro narra a desventura do violoncelista Inácio Araújo que perde a mulher para um tocador de cavaquinho. O outro, a amargura de Pestana, um famoso compositor de polcas com ambições eruditas. São caminhos percorridos tanto por Heitor Villa-Lobos como por Antonio Carlos Jobim, Ernesto Nazareth, o próprio Wisnik e Chico Buarque, bamba na música, na literatura e no teatro.
Chico Buarque, por sinal, pela primeira vez em sua carreira, cedeu uma melodia para ser letrada por alguém. A parceria com Wisnik tem endereço certo, Gal Costa, que já havia gravado Assum branco do paulista. Caetano Veloso criou ao lado do auto-intitulado “uspianista” a trilha para o próximo balé do Grupo Corpo, seguindo o exemplo de Tom Zé, que dividiu com Wisnik Parabelo, de 1997. Djavan está na fila. Para o ídolo alagoano, Wisnik é um “artista raro, com a sutileza envolvente, lírico, inspirador”. Além de incluir na turnê de seu disco Vaidade a música Pérola aos poucos Djavan, não esconde o desejo de uma parceria. Segundo ele, “o que me chamou a atenção é como Wisnik usa o instrumento especificamente para cada música. E explica: “Seu piano é como o meu violão, que existe em função da composição e só poderia ser tocado por mim.” Segundo Paulo Neves, poeta, tradutor, parceiro de Wisnik e autor do prefácio de Sem receita, o artista por enquanto goza de uma “celebridade discreta”.