15/12/2004 - 10:00
Ainda este ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deverá convocar uma reunião do Conselho de Defesa Nacional (CDN) para ajustar a sintonia de um importante plano estratégico para o País. Trata-se de um projeto para retomar a capacidade competitiva da indústria bélica nacional, sucateada nos últimos 20 anos. O projeto, batizado de Política Nacional da Indústria de Defesa (PNID), será divulgado oficialmente no primeiro semestre do ano que vem, com um investimento inicial de aproximadamente R$ 3 bilhões. A palavra de ordem para nortear todas as ações da PNID é transferência tecnológica. Nesse cenário serão desenvolvidas as ações para o reequipamento das Forças Armadas, inclusive o projeto FX, que prevê a compra de 12 ou mais caças supersônicos para substituir os antigos Mirage III da Força Aérea Brasileira (FAB). “É urgente a compra desses aviões, pois os nossos não têm mais condições de voar”, tem dito com frequência o comandante da Aeronáutica, brigadeiro Luiz Carlos Bueno.
A licitação para a compra dos caças foi aberta pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Em 2 de janeiro de 2003, no seu segundo dia de governo, Lula anunciou que o processo seria interrompido, mas em outubro retomou a licitação. Até agora, porém, o governo não chegou a um consenso sobre qual avião comprar – participam da disputa os russos com o Sukhoi Su-35 e o Mig-29, os EUA com o F-16, a Suécia e o Reino Unido com o Gripen JAS-39 e os franceses, parceiros da brasileira Embraer, com o Mirage 2000-5 BR – e o prazo de validade das propostas vence no final deste ano. Pautado pelo interesse da transferência tecnológica e do desenvolvimento da empresa nacional, o presidente Lula, de comum acordo com oficiais da FAB, parlamentares e diversos ministros membros do CDN, fez a opção pelo Mirage. Tentou obter a unanimidade do Conselho de Defesa Nacional, mas não conseguiu. “Se houver divergências em um processo como esse poderá haver um tiroteio desagradável”, disse o presidente a um interlocutor militar, há cerca de três meses. O maior obstáculo para a unanimidade era o ex-ministro da Defesa José Viegas, que, nos bastidores, regia o coro dos favoráveis à compra do avião russo, muitos deles da própria FAB. Quando Viegas deixou o Ministério, Lula fez uma nova sondagem no CDN e constatou que havia um forte movimento em favor do Gripen, o que inviabilizou o anúncio da compra dos novos caças.
Briga antiga – Oficiais da Aeronáutica afirmam que ainda no governo de FHC houve uma enorme pressão, inclusive com interesses dos Estados Unidos, para que o Brasil comprasse o Gripen. Fernando Henrique não cedeu, mas também não a enfrentou. Deixou o abacaxi para o sucessor descascar. Essas mesmas forças é que voltaram a atuar nos últimos meses, agora com novos interlocutores. Apesar de ser apresentado como um avião feito pela Suécia e pelo Reino Unido, o Gripen possui diversos componentes americanos, inclusive mísseis, radares e processadores. E não é segredo para ninguém que os Estados Unidos não têm o menor interesse em transferir tecnologia, especialmente nessa área. Documentos obtidos por ISTOÉ comprovam isso. Para que empresas americanas possam transferir tecnologia militar a outros países, é necessário que obtenham a autorização do Escritório de Controle de Negócios de Defesa, no Departamento de Estado dos Estados Unidos. Recentemente, duas autorizações envolvendo o Brasil foram negadas. Uma delas se refere a um míssil anti-radiação, capaz de localizar o alvo através do calor. No documento do Departamento de Estado dos EUA em resposta à empresa, a mensagem vem sem rodeios: “Mísseis anti-radiação têm uma significativa capacidade de combate. A introdução dessa capacidade na região da América Latina é incompatível com os interesses da segurança nacional dos Estados Unidos.” O segundo pedido refere-se à tecnologia anti-radar, o que permite a seu portador escapar dos aviões adversários. “Esta tecnologia excede o nível de capacidade aprovado para o Brasil”, registra o documento do governo americano.
Por trás da disputa entre Mirage e Gripen está uma velha briga que já teve o Brasil como palco na ocasião da compra dos equipamentos para o Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam). O processador – coração do avião, responsável pelo comando dos sistemas de armas e de radares – do Gripen é americano, produzido pela Raytheon, a mesma empresa que forneceu os radares do Sivam. No Mirage, o processador é fabricado pela Thales, antiga Thonson, que perdeu a disputa no projeto Sivam. “Os americanos já têm ingerência nos radares da Amazônia, não passaram tecnologia e não podemos, agora, cair na mesma armadilha com os aviões”, diz um membro do Conselho de Defesa Nacional. “O fato do Gripen ser mais barato não pode nos obrigar a abrir mão da transferência tecnológica.” Na parceria com a Embraer, os franceses asseguram toda transferência de tecnologia, o que permitirá ao Brasil montar um sistema de armas independente, inclusive envolvendo a Avibrás, empresa nacional que detém tecnologia de ponta na fabricação de mísseis. Além disso, a Embraer poderá alçar vôos mais altos. “Com a tecnologia supersônica poderemos apostar na construção de aviões comerciais ainda mais competitivos do que os EMB 170 e EMB 190”, diz Maurício Botelho, presidente da Embraer.
Sem licitação – Se até o final do ano o governo não conseguir construir a unanimidade no CDN, o presidente Lula poderá, no ano que vem,
fazer a compra sem licitação, o que é permitido por lei, uma vez que se trata de equipamentos de segurança nacional. Será, portanto, o momento privilegiado para incrementar a PNID. No Ministério da Defesa, já se costura a possibilidade de, uma vez livre da licitação, o Brasil comprar um avião mais moderno do que os oferecidos até agora. Nesse caso, a menina-dos-olhos da FAB é o francês Rafale. “Precisamos contar com o que há de mais moderno e com a garantia de que haverá transferência de tecnologia para a indústria nacional”, disse o vice-presidente e ministro da Defesa, José Alencar. Seja Rafale, seja outro avião equivalente, o desafio é saber se o governo irá enfrentar a pressão dos Estados Unidos, pois os americanos já estão irritadíssimos com a pretensão da Venezuela de modernizar sua Força Aérea com caças russos.