O ministro José Dirceu é um brasileiro típico com suas múltiplas e intensas paixões. Todas elas, Zé, como é chamado pelos amigos, procura realizar no limite. A paixão pelo País o levou a pegar em armas contra a ditadura militar, resultando num degredo político de seis anos que o condenou a viver longe das pessoas mais queridas. Hoje, se diz um homem realizado. pode se dedicar com mais afinco à paixão familiar: a atual mulher, Maria Rita, e três filhos de outros casamentos – Joana, Camila e José Carlos. Este último herdou o DNA político do pai e acabou de ser eleito prefeito de Cruzeiro do Oeste (PR) com o nome de Zeca Dirceu. “Ele é bom, vocês vão vê-lo como prefeito”, gaba-se. Dirceu também tem verdadeira paixão por filmes e livros, especialmente as biografias de grandes estadistas. As filhas são parceiras em seguidas sessões de cinema em casa, em DVD. “Não tenho mais vida social, não dá tempo”, queixa-se. Ele também adora Passa Quatro, a cidade natal no interior de Minas Gerais, que visita quando pode, mas divide esse amor com São Paulo, a terra de adoção. “Primeiro a prisão, depois o exílio e agora a política não me deixaram curtir a cidade. Nasci em Minas, mas no fundo sou um paulistano puro”, confessa, puxando aquele indefectível ‘erre’ tão característico do interior paulista.

Este advogado fez da política e do amor pelo País suas grandes causas. Nascido no dia 16 de março de 1946, Dirceu cultiva da origem matuta uma introspecção mesclada com a serenidade das serras mineiras. A vivência na italianíssima São Paulo, reforçada pela militância política, desde os tempos em que a barra começou a pesar – em 1961 –, semeou nele uma eloquência respeitada até pelos adversários mais duros. Essa mistura, aqui e acolá, subverte a reservada alma mineira e estoura em retóricas agudas que, por vezes, provoca desdobramentos explosivos. E não é o ‘erre’ puxadinho, que incomoda os adversários. Sua sinceridade desconcerta. “O Brasil é minha grande e verdadeira paixão. Dediquei minha vida nesses últimos 43 anos ao Brasil. Agora me sinto realizado porque o País melhorou. Temos perspectivas e esperança. Acho que minha geração chegou ao poder na hora certa. Estamos amadurecidos e temos experiência política e administrativa para enfrentar os desafios e entender também os limites do poder.” O otimismo de Dirceu projeta-se para 2005: “Hoje não existe mais crise no País, nem inflação, nem risco-Brasil. O que se discute é manter o crescimento. Um governo não pode ter só política econômica, monetária e fiscal. Tem que ter projeto de desenvolvimento”, sugere, correndo o risco de um olhar enciumado da área econômica.

Sabedoria – Diz um provérbio oriental que o bambu enverga, mas não quebra. A trajetória de vida do atual chefe da Casa Civil pode ser considerada a encarnação dessa metáfora que agrega flexibilidade e tenacidade, tolerância e resistência. “Saber o momento e a hora de resolver cada questão; saber a hora de enfrentar cada desafio; escolher o campo de luta, as armas e o momento fazem parte da sabedoria”, ensina Dirceu. Nos últimos 24 meses, desde que o PT e o ex-sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva tomaram posse, Dirceu foi obrigado a desempenhar várias funções – do ataque à defesa – como um verdadeiro capitão do time, segundo classificação do próprio Lula. Enfrentou borrascas políticas, críticas sobre seus métodos e reparos sobre suas estratégias, mas manteve-se firme como titular absoluto no meio de campo da organização gerencial, administrativa e política do governo.

Ele já foi chamado de “superministro” e “homem forte” do governo. Rejeita repetidamente as bajulações e reitera sempre que trabalha para
servir ao Brasil, ao PT, ao presidente Lula, seja como advogado, como deputado, como ministro ou como cidadão. “Meu projeto é trabalhar o máximo possível, fazer com que o governo Lula dê certo, que retome o desenvolvimento, que cumpra tudo aquilo que prometemos.” É um articulador por excelência, elogiado até pelos inimigos, com uma visão única e completa do governo, do conjunto da sociedade e da classe política com quem lida diariamente. “O Congresso é a coisa mais complicada do Brasil. Do ponto de vista do governo, evidentemente, não está resolvido”, diagnostica. Foi diante deste tripé – sociedade, Congresso e governo – que ele viveu seu dia de bambu.

Problema – Em fevereiro deste ano, quando o PT fazia aniversário de 24 anos, irrompeu a mais forte ventania sobre Dirceu. Se tornou pública uma fita, que registra o ex-subsecretário de assuntos parlamentes da Casa Civil Waldomiro Diniz extorquindo um bicheiro em 2002. Waldomiro foi expelido do Palácio e Dirceu cruzou quase que solitário os ventos bravios de então para convencer o País de que o assessor traíra sua confiança. “Sou um homem acostumado a nunca ter dúvida sobre minha honra e ética. Pela primeira vez, num assunto no qual não tenho nenhuma responsabilidade, se criou na sociedade uma idéia de que eu podia estar envolvido com algo.

Como sei que não estou e nunca estive envolvido, tenho tranquilidade. Mas que é duro, é”, confessa ele, com olhos cheios d’água, passados dez meses do escândalo e frisando a solidariedade do presidente Lula, que insistia que o episódio era uma bobagem e estava superado. Depois de passar o que chamou de os 32 piores dias de sua vida na esteira do caso Waldomiro, o pisciano José Dirceu saiu da coordenação política do governo para se converter num grande gerente das ações governamentais. Tem a agenda carregadíssima: conversa por telefone ou despacha com 20 ministros por semana e envia mais de 30 e-mails por dia. Seu aniversário de 58 anos se transformou em catarse pública. O homem que sempre enfrentou adversidades fez um desabafo-síntese de sua vida: “Fazer parte do governo não é ser ministro, porque se eu deixar o cargo, eu nunca vou deixar de participar do governo. Nunca! Não nasci deputado nem ministro. E já recomecei minha vida várias vezes e recomeço de novo.” É verdade. Dirceu já recomeçou do zero várias vezes e teve tantos nomes falsos que ele nem se lembra: uma identidade falsa entre 1971 e 1973, seu primeiro retorno no Brasil na clandestinidade, vários codinomes e um passaporte argentino. Para culminar, criou um alter ego, Carlos Henrique Gouveia de Mello, que o acompanhou de 1975 a 1979.

Resistência – O primeiro começo foi em 1961, quando desembarcou como mais um anônimo Zé na indomável metrópole paulista, vindo das Minas Gerais. Quatro anos depois já agitava os corredores da PUC, onde iniciou sua militância política na União Estadual dos Estudantes (UEE), da qual ainda é presidente de honra. Defensor da resistência armada ao regime militar, foi preso em 12 de outubro de 1968 no famoso 30º congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) em Ibiúna (SP). “Nunca fiz com paixão a parte da luta armada. A parte da clandestinidade eu fiz com paixão”, conta. Ligado ao Agrupamento Comunista, que depois se tornou a Aliança Libertadora Nacional (ALN), corrente hospedada dentro do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e comandada por Carlos Marighella, Dirceu ou “Daniel”, seu codinome de então, foi libertado em setembro de 1969 em troca do embaixador americano Charles Elbrick – sequestrado pela ALN e pelo MR-8. Com seus direitos cassados, foi banido do país e se refugiou em Cuba.

Novo recomeço: fez treinamentos militares e de clandestinidade. “Construí uma história. Levei seis meses para isso. Você atua quase como um ator, senão é morto. Passei a entrar e sair do Brasil com arma, informação e documentos”, relembra. Dirceu ficou em Cuba até 1975, quando retornou clandestino para ficar de vez no Brasil e de cara nova. Fez cirurgias plásticas e quando bateu em Cruzeiro do Oeste convertido em caixeiro-viajante, já era Carlos Henrique Gouveia de Mello. Montou uma nova vida casando-se com Clara Becker, de quem escondeu a verdadeira identidade por quatro anos. “Não tinha jeito. Fiquei dez anos sem falar com meus pais. Se é para viver clandestino, é para viver clandestino, senão você vai ser morto.” Só em 1979, com os ventos suaves da anistia, Dirceu pôde regressar a São Paulo, recomeçar sua atividade política e reencontrar a identidade original: José Dirceu de Oliveira e Silva. Foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores. Depois de bater máquina na liderança do PT lá no início da década de 80, Dirceu foi secretário de formação política, secretário-geral e coordenador do partido na histórica campanha pelas Diretas-já, em 1984. Dali foi eleito deputado estadual dois anos depois. Em 1990 foi eleito deputado federal, em 1994 ficou no terceiro lugar na disputa pelo governo paulista e no ano seguinte assumiu a presidência nacional do PT, onde ficou por 7 anos, através de inéditas eleições diretas. “Eu lutei contra Deus e o mundo para o PT assumir a eleição direta”, relembra ele. Depois disso foi deputado federal mais duas vezes (a segunda, em 2002, com mais de 500 mil votos) e o principal estrategista na vitoriosa campanha de Lula. Foi ele quem enquadrou os sectários do partido e convenceu o candidato a ampliar a aliança com o centro – o Partido Liberal – para não amargar a quarta derrota seguida. Viu-se que Dirceu tinha razão. Sua autoridade e seu controle sobre o conflituoso mundo petista e o trânsito fácil entre os demais partidos o tornaram uma figura ímpar no cotidiano da política. “Quando eu falava em alianças em 1985 o pessoal quase me expulsava das reuniões. Quem introduziu esse debate no PT fui eu”, admite.

Metódico e organizado, características que evoluem comumente para o adjetivo de autoritário, Dirceu toma boa parte de seu dia para viabilizar o projeto de poder do partido. “Eu não sou autoritário nem stalinista. Tudo que aprovei no PT foi por voto. O que odeio é incompetência”, protesta com veemência. É um incansável devorador de biografias. Só este ano já leu a de Winston Churchill (primeiro-ministro inglês que comandou a Grã-Bretanha na Segunda Guerra Mundial), Otto von Bismarck (estadista e militar alemão responsável pela formação do Segundo Reich após a derrota da França na guerra Franco-Prussiana) e Joseph Stalin (ditador soviético que sucedeu Lênin e perseguiu inimigos). Também devora livros de economia e desenvolvimento, sua mais recente paixão. “Leio dois livros sempre. Uma biografia ou história e outro de economia. Comecei agora o livro do Antônio Dias Leite, sobre economia brasileira”, conta Dirceu. A predileção por estrategistas de tempos belicosos explica, em parte, os projéteis disparados quando a situação exige. Em uma entrevista na televisão disse, em setembro deste ano, que os procuradores eram “pequenas gestapos”. Antes havia metralhado os tucanos Aécio Neves e Tasso Jereissati. Nos dois casos voltou atrás e desculpou-se publicamente. “Eu reconheço meus erros. Assumo meus erros.”

Canivete – Embates pontuais à parte, Dirceu é hoje o galvanizador dos desenvolvimentistas do PT. Embora não haja uma briga de fundo, sempre que pode cutuca a ortodoxia da área econômica. “Às vezes se cria no Brasil uma espécie de interdição do debate de política fiscal”, criticou ele certa vez. O ministro produziu frases célebres. Em uma delas em setembro, quando condenava os juros altos, disse que não era “robô” e por isso poderia falar de economia, mesmo sabendo que iria criar um problema. Vê-se que esse mineiro não tem papas na língua. No início do governo, em uma reunião política onde se discutiam metas tributárias, ele sentiu-se afrontado pelo deputado Edmar Moreira (PP-MG), que tem o hábito de fumar cigarros de palha. Chamou o parlamentar e cravou, sem meias-palavras: “Cadê aquele canivetinho para cortar o fumo?” Depois que Edmar sacou o objeto do bolso, o ministro foi mais cortante que o fio do canivete: “Você está pensando que vai colocar esse canivete na nossa garganta? Quero deixar claro que no governo Lula, enquanto eu for o chefe da Casa Civil, você não vai fazer.”

Brigão quando preciso, flexível às vezes, José Dirceu também sabe ser humilde e cauteloso. Quando perguntado se deseja ser coordenador político do governo ou presidente da Câmara, diz que não tem projetos pessoais. Prefere dar prioridade ao PT, ao governo e às necessidades do presidente. “Eu até gostaria de governar uma cidade ou um Estado. Sei que tenho condições. Mas, veja o quadro de São Paulo, por exemplo. Lá eu não tenho muito espaço para isso. Tem o Aloizio Mercadante, a Marta Suplicy, o João Paulo Cunha e o José Genoino. Como chefe da Casa Civil eu não posso aspirar cargos majoritários. É incompatível.”