ORMUZD ALVES/FOLHA IMAGEM

LILA Depressão depois do câncer do marido

Mesmo para uma geração mais politizada que participou ativamente da luta pela normalidade institucional do Brasil, resta sempre uma face obscura na biografia de políticos, como Mário Covas, que enfrentaram o cárcere no regime militar, renasceram das cinzas da ditadura e se firmaram como ícones da redemocratização. Espécie de cereja no bolo das campanhas eleitorais, o lado familiar de um político é quase sempre apresentado como ele gostaria que os outros o enxergassem e não como ele realmente é. Pois foi assim, contando a história como quem toma um café com bolachas na sala de casa, que Lila Covas escreveu o mais tocante livro sobre a família de um dos maiores políticos do Brasil. Lila Covas – histórias e receitas de uma vida (Ed. Global, 360 págs. R$ 59, co-autoria da jornalista Luci Molina) é uma viagem política mas também fala sobre a capacidade de enfrentar contratempos, do seqüestro e prisão do marido ao trauma da morte de uma filha. Em cada episódio, Lila recorre à cozinha, o único fio linear a guiar a oscilante vida de alegria e dor, e fornece ao leitor receitas de cada momento.

A prisão
"Maluf estava em casa com uma forte gripe. Como era amigo dos militares, apenas com um telefonema descobriu o paradeiro do Mário. Ele estava preso na Base Aérea de Cumbica. Peguei a sacola com as coisas de Mário e fui direto. Era uma sexta-feira, chegamos às 11 horas da noite. Fui logo dizendo para o soldado que estava de guarda: ‘Sei que meu marido está aqui e não saio sem falar com ele’." Receita: bolo de cenoura com cobertura de chocolate

Pai ausente
"As crianças viam sempre os tios presentes nos aniversários, viam as outras crianças apagarem a velinha do bolo ao lado do pai. Ficavam observando os pais levarem os filhos para escolherem os presentes. Mário, por sua vez, nunca fazia isso, era quase uma visita em casa. Ele achava que cobria todas as necessidades dos filhos. Quando eles disseram o que realmente pensavam, ele mal acreditara". Receita: maionese de carne de siri

Sangue espanhol
"(..) Quando o time não estava indo bem, o sangue espanhol fervia. Eu tinha uma cadeira, muito bonita, estilo Luiz XV (…) A cadeira, linda, era o meu xodó. (…) Num belo dia, o Santos perdia e algum jogador fez uma bobagem. Foi o que bastou: Mário pegou a cadeira e jogou no chão de raiva. Nunca mais teve conserto. – ‘Tanta cadeira feia aqui em casa e você tinha que quebrar justamente essa?’." Receita: sopa creme de peixe

O acidente da filha

"A Silvia queria de qualquer jeito ver o primeiro dia do ano amanhecer no Guarujá. Foi para a orla chamando todos os amigos. Para ela, quanto mais gente, melhor. Assim que chegamos em casa fui fechar a porta da varanda. Neste momento, eu tive uma visão da Silvia estendida numa graminha. Aí, vi que ela ainda não estava em casa (…) Quando entrei no quarto, meu irmão estava ao lado de Mário, que tinha acabado de perder os sentidos. Ao vê-lo desmaiado, eu olhei para minha cunhada e fiz a pergunta, sem querer ouvir a resposta: ‘Ela morreu?’" (…) Mário nunca quis saber o nome do motorista que causou o acidente. Ele dizia que nada poderia trazer a filha tão amada de volta. Meu marido também nunca mais foi o mesmo. Nem nenhum de nós." Receita: bolo de morango com cobertura de chocolate

Infarto
"Estávamos em casa, o Mário jogava xadrez na sala e eu estava na cozinha quando escuto ele me chamar: ‘Lila, ligue para o hospital imediatamente que eu estou tendo um infarto’, disse segurando o peito. Na aflição, eu não enxergava nada, fiquei enlouquecida, pedi então para meu filho Zuzinha chamar uma ambulância. Nem sei como cheguei ao hospital." Receita: Sopa de cebola

Constituinte
"Era chumbo grosso. E muitas vezes dos próprios companheiros de partido e de amigos. Quantas vezes ele ficou aborrecido vendo nos jornais que, no dia anterior, tinha acontecido uma reunião na casa de um colega de partido, e ele não fora chamado. Isso era uma traição. Tinha político que se fazia de amigo e por ciúme dava facada nas costas. O Mário sofria muito e dizia que isso era parte do jogo. O político era ele e não eu." Receita: salada italiana

Era Collor
"Logo depois do confisco, presenciamos os efeitos desastrosos do plano econômico. Um colega de Mário da escola, muito próximo a nós, estava com tantos problemas financeiros depois do plano que foi até a varanda da sua casa e deu um tiro na boca. Mário ficou chocado. Como a política pode mexer e destruir a vida de uma pessoa." Receita: omelete ao ponto

Câncer
"Mário estava com umas dores estranhas nas costas e, depois da campanha para a reeleição, resolveu fazer alguns exames. Após esses exames, chegaram lá no palácio uns seis médicos. Eu saí para que eles pudessem conversar à vontade. Afinal, já que o assunto seria a próstata, poderia deixá-los sem graça. Um médico que estava no grupo foi taxativo: ‘É câncer e é grave’. Fui para a copa e liguei escondido para nosso filho Zuzinha. Eu chorava sem parar." Receita: lulas crocantes deliciosas

Depressão
"A depressão, depois da morte do Mário, foi tomando conta de mim com uma violência impiedosa. Não consigo me reconhecer. Na depressão, fico no meu avesso. Não quero fazer nada. Essa doença é um saco. Meu querido neto Bruno se casou e eu nem fui ao casamento. Não tinha forças. Queria ficar deitada. Sem me mexer. Não ouvir nada. Não pensar, não sofrer, não viver." Receita: bolo Pelé

O então prefeito Paulo Maluf descobriu e repassou para a família o lugar onde Mário Covas estava preso pelo regime militar