10/10/2007 - 10:00
As duas pontas dos bigodes espessos, sua marca registrada desde a juventude, curvaram-se para cima, o sinal claro de que José Sarney estava em estado de euforia. Eram 10h30 da quarta-feira 3 e ele recebia a informação de que, minutos antes, a Vale do Rio Doce arrematara, por R$ 1,48 bilhão, em leilão público na Bovespa, a concessão para exploração de um trecho da ferrovia Norte-Sul, projeto lançado por ele, Sarney, em 1986, quando era presidente da República. “Esperei muito tempo por isso, ótimo, ótimo”, festejou o senador. Sarney é contido, segura os gestos, mede as palavras, só se trai quando os bigodes invertem a inclinação. Naquela manhã de quarta-feira ele usufruía de uma revanche rara, aguardada pacientemente por mais de duas décadas. “Quando lancei a Norte-Sul, fui acusado por quase todos de querer ligar o nada a coisa alguma”, recorda-se. “Mas eu queria criar dois grandes eixos de progresso, fazer a Norte-Sul e a Leste-Oeste. Eu tinha a visão estratégica de mudar a matriz de transportes rodoviário criada por Juscelino.” A Vale do Rio Doce é uma empresa privada. Quando se manifesta o interesse privado por uma estrada de ferro é porque, muito provavelmente, ela talvez não ligue nada a coisa alguma.
Sarney descruza as pernas e bate as mãos três vezes uma na outra, como se estivesse batendo palmas. Em seguida, vem a revolta: “Não deixaram o Sarney concluir a obra para que eu não me consolidasse politicamente.” Na verdade, Sarney foi abatido por aquele que se tornou o primeiro grande escândalo da redemocratização do País, o maior de seu governo, quando o resultado da licitação para as obras da Norte-Sul foi publicado antecipadamente num anúncio cifrado em jornal antes da abertura dos envelopes.Ou seja: ficou claro que a concorrência era um jogo de cartas marcadas. As obras da ferrovia acabaram feridas de morte. Sarney entregou o governo a Fernando Collor com somente 100 quilômetros de ferrovia construídos. Collor mandou parar com as obras; Itamar Franco desdenhou do projeto. Quando Fernando Henrique chegou, Sarney passou oito anos publicando artigos favoráveis à ferrovia. Nada, porém, saiu do papel.
A ferrovia ressuscitou com a chegada de Lula ao Planalto. Ainda na campanha eleitoral, o atual presidente prometeu retomar as obras. “Ele fez um discurso confessando que se arrependia de ter combatido tanto a Norte-Sul; ele até reconheceu que o Sarney havia tido uma grande visão sobre a verdadeira estrada da expansão nacional”, lembra Sarney. Melhor dar um desconto às suas palavras. Lula acredita na Norte-Sul. Mas também tem usado a ferrovia para manter azeitada a boa relação com o
senador. A cada Orçamento que elabora, a cada plano novo de obras que lança, Lula tem repetido aos ministros que separem verbas “para a Norte-Sul do Sarney”.
Quando pronta, a Norte-Sul terá 1.980 quilômetros, ligando Belém (PA) a Anápolis (GO) – e dali vai se interligar à malha que sai de Brasília para São Paulo e Rio. Devem-se somar outros 505 quilômetros construídos pela Vale do Rio Doce para levar os minérios da Serra dos Carajás para o Porto de Itaqui (MA). Ano passado, durante a campanha eleitoral, Lula inaugurou mais 150 quilômetros. Levou junto Sarney. “Me emocionei muito”, conta o senador. Há mais 214 quilômetros de obras em andamento. O que a Vale do Rio Doce arrematou foi a concessão para explorar comercialmente um trecho de 720 quilômetros entre Palmas (TO) e Açailândia, no entroncamento com a Ferrovia Carajás, que é da mineradora. O leilão prometia ser disputado. Um grupo privado chinês apareceu avisando à estatal das ferrovias, a Valec, que entraria para ganhar. Foi embora sem sequer revelar o nome de seus donos. Outro grupo, de misteriosos russos representados por um uruguaio, também se qualificou.
Eles já têm os direitos para fazer a pesquisa de uma lavra de minérios na Serra do Carmo, ao lado de Palmas. Na última hora, um representante dos russos procurou a direção da Valec, para informar que de sistiriam do leilão. Antes, precisavam fazer mais pesquisas sobre o tamanho das jazidas do Tocantins. Se for grande, os russos agora terão que se acertar com a Vale.
A mineradora entrou no leilão sozinha. O pregão teve início às 10h. As formalidades foram cumpridas com rapidez incrível. Houve apenas dez segundos para a entrega do envelope com o nome do único interessado. A Vale ofereceu o preço mínimo: R$ 1.478.205.000. Um minuto depois, o martelo foi batido. As obras não serão feitas pela concessionária. A Valec continuará contratando empreiteiras para construir os novos trechos da Norte-Sul. “Só que agora vamos construir com o dinheiro privado levantado nos leilões”, explica José Francisco das Neves, o presidente da Valec.O transporte por ferrovia é metade do preço do rodoviário. Nos próximos cinco anos, prevêem os estudos da Vale, haverá um crescimento vertiginoso na produção de soja na região por onde passa a Norte-Sul. A safra deste ano foi de 1,7 milhão de toneladas. Com a perspectiva de escoamento mais barato, a de 2013 deverá ser de 8,8 milhões de toneladas.
O plano é construir mais 1.100 quilômetros de trilhos entre Estreito (MA) e Anápolis até o final deste governo. No meio do caminho, em Jaguará (GO), sairá um ramal ligando a Norte-Sul a outra ferrovia, a Ferronorte, entre Cuiabá e São Paulo, que começou a ser construída também no governo Sarney pelo empresário Olacyr de Moraes. O leilão desse trecho está marcado para meados de 2008. O preço mínimo deve ser próximo a R$ 2 bilhões. José Sarney sabe todos esses números de cor. Ele está vivendo sua grande revanche histórica.
Colaborou: Daniel Leb Sasaki