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Movido pela ironia típica dos britânicos, o diretor inglês Alfred Hitchcock (1899-1980), um dos maiores gênios do cinema, deixou, além de filmes inesquecíveis, um punhado de frases memoráveis. Dizia, por exemplo, sobre os atores: "são gado". Não foram poucos os astros que reclamaram do tratamento que dele receberam. James Stewart, protagonista de clássicos como Janela indiscreta e O homem que sabia demais, chegou a lamentar: "Hitch está mais interessado na atuação da câmera." Agora, um livro revela mais detalhes sobre a relação de Hitchcock com os atores. Ou melhor: com as atrizes, especialmente aquelas belíssimas loiras que passaram a encabeçar seus melhores filmes. Gente do porte, por exemplo, de Ingrid Bergman, Kim Novak, Grace Kelly, Tippi Hedren e Vera Miles (foto da capa), pelas quais Hitchcock nutria um misto de amor e ódio. Mais amor que ódio, aliás. E esse sentimento chegava muitas vezes ao assédio sexual. Quem garante isso é o escritor americano Donald Spoto, autor de Fascinado pela beleza – Alfred Hitchcock e suas atrizes (Larousse, 316 págs., R$ 59,90). "Será que os admiradores mais zelosos de Hitchcock minimizam ou até desprezam esse triste episódio por considerarem que essa forma de tratar as atrizes constituía apenas brincadeira juvenil?", pergunta Spoto. Ele próprio responde: "Não. Hitchcock passava dos limites."

O caso mais flagrante de assédio aconteceu com a atriz Tippi Hedren, que o diretor lançara em Os pássaro. Durante as filmagens de Marnie – confissões de uma ladra e no auge de sua completa obsessão pela atriz, Hitch a chamou em seu escritório antes de uma cena e disse que a partir daquele momento ela tinha que ficar "sexualmente disponível" e acessível para ele. Tippi se indignou:

"Quero o fim desse contrato. Não quero mais ficar perto de você." Furioso, o diretor afirmou que iria destruir sua carreira e que ela nunca mais conseguiria atuar no cinema. Ele tinha poder para isso, especialmente nesse caso – ela estava apenas em seu segundo trabalho importante em Hollywood. Era modelo e Hitch a vira na tevê em um anúncio de produtos para emagrecimento. Quis contratá-la imediatamente.

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TRILOGIA
O livro é o terceiro de Spoto sobre o mestre do suspense.
Ele esperou o cineasta morrer para tornar público o teor de suas entrevistas

Entra em ação "Zvengali Hitch", como o próprio diretor se autodenominava. Zvengali é um personagem da literatura que transformou uma mulher em grande cantora graças à hipnose. Hitchcock tinha outras habilidades: era mais um pigmalião. O diretor sempre foi obcecado em moldar talentos, mas no caso de Tippi exagerou. Ensinou-a sobre pratos e vinhos, decidiu seu guardaroupa particular e exigiu que passas-se a assinar o nome entre aspas. Chegou, inclusive, a discutir com ela o roteiro de Os pássaros.O controle sobre sua vida intensificouse quando a atriz foi finalmente escalada como protagonista, a contragosto dos estúdios Universal. "Ele supervisionou a cor precisa de suas perucas, o penteado de seu cabelo e cada elemento sutil de sua maquiagem", escreve Spoto.

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"Hitch veio até mim antes de filmarmos a cena e sussurrou : me toca. Seu tom e olhar deixavam claro o que ele queria. Era nojento"
Tippi Hedren (acima. no set de Os pássaros)

Nas filmagens, não permitia que o ator Rod Taylor (que fazia par com ela) a tocasse depois que gritava "corta!". A atriz descobriu que estava sendo seguida por funcionários do estúdio: Hitch queria saber se ela saía com alguém nas horas de descanso. "Ele me contava piadas sujas e declamava versinhos pornográficos, especialmente depois de descobrir que eu não gostava desse tipo de coisa", disse Tippi a Spoto, que decidiu publicar essas declarações e o conteúdo de outros documentos somente após a morte do diretor, em 1980. Geralmente, o cineasta segredava suas perversidades à atriz minutos antes de rodar uma cena para obter expressões de pânico. Mas nem sempre era assim.

Numa ocasião, Hitch simulou um abraço ardente dos dois no banco traseiro de uma limusine para que as pessoas próximas achassem que havia algo entre eles. Como não era correspondido, talvez inconscientemente punia Tippi com cenas sádicas. Na mais famosa delas, a atriz enfrentou cinco dias de filmagens em um quarto fechado com centenas de pássaros vivos, que chegavam a bicar e a defecar em seu rosto. Foi uma tortura psicológica e física tão grande que ela entrou em colapso e teve de que ficar dez dias de repouso.

Nessa época, Hitchcock tinha 64 anos, 37 deles passados com a roteirista Alma Reville, com quem manteve um casamento celibatário. Além de sádico e intimidador, ele é pintado por Spoto como fetichista, manipulador e ciumento. Para chegar ao clima de erotismo almejado numa cena de Psicose, pediu à atriz Janet Leigh que acariciasse o ator John Gavin – deu a entender que o colega sabia da instrução. Mentira. Ele vangloriou-se com um rapaz da equipe: "Mr. Gavin está tendo uma ereção." Pode até ser que Hitchcock (que zombava da interiorização dos atores e prescrevia uma espécie de atuação "sem atuar") usasse esses métodos para conseguir reações mais naturais do elenco. Mas algumas de suas estrelas conseguiam ótimas performances sem cair nas armadilhas. Grace Kelly, por exemplo, neutralizou o efeito das piadas sujas não dando importância para suas investidas: "Eu disse que tinha ouvido coisas piores no colégio de freiras." Quando ela se casou com o príncipe Rainier, de Mônaco, Hitchcock destilou seu veneno. "Grace encontrou o verdadeiro papel de sua vida."

O DIRETOR HITCHCOCK EM AÇÃO

 
QUANDO FALA O CORAÇÃO

Nas filmagens Hitch inventou que Ingrid Bergman foi a um jantar em sua casa e só saiu do seu quarto depois de fazer sexo
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PSICOSE

Hitch queria que Janet Leigh atuasse nua na cena do chuveiro, uma ousadia para a época. "Eu o adorava, mas ele tinha a mente travessa", disse ela

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UM CORPO QUE CAI

Kim Novak não queria usar sapatos altos e pretos, um fetiche de Hitch, que a chamou de criança burra e passou a tratá-la com frieza no set

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JANELA INDISCRETA

Durante as filmagens, o diretor se deliciava com as aventuras amorosas de Grace Kelly, que não se escandalizava com suas piadas

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