Beijar é bom. Ser beijado é ótimo. E não importa quem são os protagonistas, significa sempre querer bem. A mãe que beija o filho demonstra o carinho único. O contato fraterno entre amigos é sinal de confiança. Os lábios de um casal apaixonado que se tocam é a prova do desejo mútuo. O cumprimento de conhecidos, rosto com rosto, seguido do estalo característico é a abertura para uma aproximação. Até aquele que beija primeiro para perguntar o nome depois é beneficiado com a sensação de bem-estar. Esse hábito, presente em 90% das culturas no mundo, é tão irresistível que os cientistas resolveram se dedicar a entender seus mecanismos. Esta área de estudo, inclusive, tem nome: filematologia.

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Mas pouco se sabe o porquê da nossa necessidade de sair beijando por aí. Pesquisas apresentadas na sextafeira 13, durante o encontro anual da American Association for the Advancement of Science, em Chicago, nos Estado Unidos, indicam que o ato é uma ferramenta importante para melhorar a qualidade de vida e definir se haverá compatibilidade em um relacionamento. Um dos trabalhos divulgados foi o da neurocientista Wendy Hill, da Lafayette College, na Pensilvânia. Ela avaliou quinze casais, com idades entre 18 e 22 anos, e concluiu que o beijo na boca equilibra uma série de hormônios.

Os voluntários foram divididos em dois grupos. No primeiro, o beijo era liberado. Para o segundo, apenas as mãos podiam ficar entrelaçadas. O cortisol, substância que é gatilho para o stress, diminuiu no corpo dos participantes do grupo um. A ocitocina, fundamental no desenvolvimento de afeto e necessidade de cuidado com o outro, aumentou na corrente sanguínea desses mesmos jovens. Esse hormônio, que até há pouco tempo era conhecido por fortalecer os vínculos entre mãe e bebê na hora da amamentação, começa a ser chamado também de "substância do amor" justamente pelas comprovações de que ele entra em ebulição após o contato prazeroso entre as bocas.

Intensificar laços amorosos é o papel principal do beijo, afirma a antropóloga Helen Fisher, professora da Rutgers University e autora do livro Why him, why her: finding real love by understanding your personality type (em tradução livre, Por que ele, por que ela: descobrindo o amor verdadeiro pela compreensão do seu tipo de personalidade), lançado no mês passado. "O beijo libera reações químicas que afastam ou aproximam um parceiro em potencial", disse Helen, durante o encontro em Chicago. A saliva, por exemplo, transmite informações sobre a carga genética de cada um. "Os homens têm testosterona na língua e talvez por isso prefiram esse tipo de beijo. É um indício de que estão tentando fazer a mulher ‘ler’ sua carga genética", diz a pesquisadora. "Mas ainda há muito o que desvendar sobre o assunto."
 

A "leitura" genética entre os universitários Jorge Assef, 20 anos, e Tâmara Leite, 22, vem dando muito certo. Junto há cinco meses, o casal é assumidamente beijoqueiro. Na primeira vez em que seus lábios se tocaram, o encontro durou seis minutos, sem intervalos. Incomodados, os amigos já chegaram a pedir que fossem para um local mais reservado. "Quando não estamos conversando, estamos beijando. Depois de uma briga, os beijos são mais longos e apaixonados", diz Assef, reforçando que não começa um namoro se a primeira experiência tiver sido ruim. Tâmara concorda: "Se o beijo não funciona, não dá vontade de dar outro."

NOVIDADE
Na primeira vez em que ficaram juntos, jorge assef e tâmara leite mantiveram as bocas grudadas durante seis minutos

O jovem casal está certo, de acordo com um estudo publicado na revista científica Evolutionary Psychology. Pesquisadores da Universidade de Albany e da Universidade de Nova York avaliaram mil estudantes e concluíram que o primeiro beijo do casal define o futuro da relação. Após o primeiro contato, 59% dos homens e 66% das mulheres disseram ter descoberto não estar mais interessados em alguém por quem se sentiam atraídos anteriormente. "É possível que o beijo ative mecanismos evoluídos que funcionam para desencorajar a reprodução entre indivíduos que seriam geneticamente incompatíveis", diz o psicólogo Gordon Gallup Junior, coordenador da pesquisa. O estudo indicou também que as mulheres dão mais importância aos beijos do que os homens, utilizando o ato como uma avaliação para saber se o parceiro interessa e se há chance de manter e intensificar a intimidade.

O que a ciência já comprovou é que, ao beijar, é liberada uma avalanche de sensações prazerosas enviadas pelo cérebro ao corpo benéficas para a saúde (leia quadro ao lado). "É uma manifestação de afeto fundamental para o bem-estar", diz a terapeuta de casal e família Magdalena Ramos, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Na teoria da evolução das espécies, o cientista Charles Darwin afirmava que a origem dessa carícia é antiga.

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EMPOLGAÇÃO O casal Egly Dejulio e Tony de Marco se beija há 28 anos.
"Com o tempo só melhora", diz Egly

Seria a sofisticação das mordidas que os macacos trocavam nos rituais pré-sexuais. Para o pai da psicanálise, Sigmund Freud, a amamentação, primeiro contato do ser humano com o outro, seria a origem do beijo. "É a primeira habilidade que aprendemos e que nos dá prazer", diz Magdalena. A antropologia vê na prática ancestral da pré-mastigação a transferência de alimento macio de uma pessoa para a outra, provavelmente da mãe para o filho.

A boca como uma possibilidade de erotismo ganhou visibilidade com o cinema americano. Em A um passo da eternidade, os personagens de Burt Lancaster e Deborah Kerr protagonizam uma cena de tirar o fôlego deitados numa praia. O singelo beijo de despedida entre Humphrey Bogart e Ingrid Bergman marcou o final de Casablanca.Numa das sequências do filme Homem-Aranha, o herói encosta seus lábios nos de Mary Jane, sua paixão platônica, de cabeça para baixo."Antes do desenvolvimento da indústria do cinema, por volta dos anos 40, e inclusive por questões de higiene bucal, o beijo não tinha a dimensão social e a importância que tem hoje", afirma a historiadora Mary Del Priore, professora da Casa do Saber.

No Brasil, o hábito não era comum entre os índios. Chegou com a vinda dos portugueses, que descobriram carícias como o beijo por meio da literatura erótica oriental, como o Kama sutra.
"Referências sexuais eram perseguidas pela Igreja Católica, inclusive as preliminares amorosas nas quais o beijo se inseria. O único que não era pecado era o dado na testa de uma criança", explica a historiadora.As novelas deram exposição ao ato na cultura brasileira. O primeiro beijo na tevê ocorreu em 1951, entre Vida Alves e Walter Forster.

O protagonizado por Sônia Braga e Armando Bogus em Gabriela, em 1975, mudou o padrão vigente. Foi tão ardente que até saliva escorreu da boca dos atores. "Foi algo nunca visto até então, com uma forte carga de sexualidade", diz Mauro Alencar, doutor em teledramaturgia pela USP. A partir dos anos 80, o beijo passou a acontecer nos quartos, com sugestão de sexo. O seriado Malu mulher, protagonizado por Regina Duarte, marca esta guinada.

" Beijar vários na balada agrega status. É a prova de que se é desejado"
Carmita Abdo, coordenadora do Projeto Sexualidade do Hospital das Clínicas (SP)

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Nos dias de hoje, é até um símbolo de poder. "Beijar vários na balada agrega status. É a prova de que se é desejado por muitos e dá ao beijador uma condição especial", explica a psiquiatra Carmita Abdo, coordenadora do Projeto Sexualidade do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. Mas censuras ainda acontecem, mesmo no Ocidente, que tem uma postura mais liberal. Em janeiro, a Prefeitura de Guanajuato, no México, aprovou uma lei que pode levar à prisão quem se beijar em público.

Na última semana, uma estação de trens britânica da cidade de Warrington recebeu cartazes com pedidos aos passageiros para que não se beijem em determinadas áreas durante as despedidas mais emotivas. Entre amigos o beijo também é importante. Significa afeto e confiança, segundo Carmita. "Pode ser dado na testa, na bochecha, na cabeça e costuma vir acompanhado de um abraço." O ato formal e social, de cumprimento com conhecidos, é apenas educação, mas envia a mensagem: "Dou boas-vindas a você e quero me aproximar."

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A vontade de colar os lábios nos lábios do parceiro é um termômetro importante nas relações. Entre todas as estatísticas populacionais realizadas no Brasil pela psiquiatra Carmita Abdo, o beijo é o mais lembrado pelos casais quando questionados sobre o que reflete a intimidade deles de maneira positiva. "Casais que se distanciam revelam que o beijo é o primeiro elemento a desaparecer da relação. Muitos até mantêm o sexo, mas perdem a capacidade de beijar", diz Carmita. É pelo significado de intimidade ser tão grande que as prostitutas rejeitam o contato entre as bocas. "Assim elas mostram que não há envolvimento romântico. É apenas trabalho", diz a terapeuta Magdalena Ramos.

Juntos há 28 anos, a designer gráfica Egly Dejulio, 45 anos, e o artista plástico Tony de Marco, 47, trocam beijos intensos ainda como nos tempos de escola. Eles começaram a namorar na adolescência, numa viagem para um sítio. "Éramos o terror dos namorados no início e continuamos bem beijoqueiros", conta Marco, que diz ser muito romântico.

"Com o tempo esse carinho só melhora. O importante é não deixar virar uma coisa corriqueira", afirma Egly. Um dos segredos do casal para não perder a atração que leva ao beijo é nunca dormirem brigados. "Sempre conversamos e tivemos disposição para resolver algum problema", diz Egly.

Bons relacionamentos na vida adulta, como o de Egly e Marco, podem ser reflexo de uma infância em que beijos carinhosos por parte dos familiares eram frequentes. Estudos mostram que crianças que são constantemente afagadas pelos pais se tornam pessoas mais gentis e confiantes, diz a neuropediatra Sueli Rizzutte, pesquisadora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

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 EM CASA
A família de Sérgio Rico é muito beijoqueira. "É o tempo todo, virou um ritual na nossa vida", diz ele, que é pai de três fi lhos

" Referências sexuais eram perseguidas pela Igreja, inclusive o beijo"
Mary del Priore, historiadora

"A mensagem que o beijo materno ou paterno envia para a criança é de que ela é amada. Se acontece sempre, ela vai aprender a repetir esse padrão", afirma a neuropediatra. A predisposição para mostrar afeto com um beijo é genética. Esse comportamento, porém, sofre influências do ambiente. "A criança que geneticamente estaria mais propensa às demonstrações de carinho, mas que foi criada com contatos frios, superficiais, terá mais dificuldade para desenvolver a sensibilidade", explica.

Os três filhos do técnico judiciário Sérgio Rico, 43 anos, estão sendo criados em um ambiente carinhoso. Na casa deles tudo é pretexto para espalhar beijos: a competição de judô do Marcelo, de 18 anos, a hora de acordar do Vinícius, de 15, o banho da Beatriz, de dois anos. "É o tempo todo, ao dar bom-dia ou boa noite. Virou um ritual na nossa vida", conta Rico. "Brigas entre pessoas que se gostam são normais, mas com certeza o beijo adoça bastante a relação." Seja na família, seja entre amigos ou entre casais: o que importa é que beijar é fundamental. 
 

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Colaborou Carina Rabelo