13/07/2005 - 10:00
As ofertas são várias e de todos os tipos. Hoje, moldar o corpo como bem quiser é uma atitude não só possível como cada vez mais comum. Como em nenhum outro período da história, podemos aumentar ou diminuir partes do corpo, mudar a expressão facial, a cor dos olhos, usar quilos de cosméticos, cobrir ou exibir. Essa liberdade impressionante traz à tona questões que os especialistas em psicologia começam a estudar. Uma delas é o aumento do número de pessoas que sofrem com transtornos de imagem, como a anorexia e a bulimia (distúrbios alimentares), entre outros. São indivíduos permanentemente insatisfeitos com a própria aparência. Numa dieta aqui e numa cirurgia plástica ali, buscam um ideal de perfeição que, na sua concepção, estão longe de atingir.
Verdadeira praga nesses tempos modernos, o problema aumenta entre jovens, principalmente mulheres. A psicóloga Mara Cristina Souza de Lucia, diretora da Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas de São Paulo, dedicou-se, nos últimos oito anos, a atender pessoas com essas e outras dificuldades em lidar com a imagem corporal. Viu casos extremos, como o de um fisiculturista que continuava a tomar anabolizante mesmo com câncer e graves problemas renais. Sua experiência também lhe permite afirmar que a preocupação com as formas rende outros transtornos. “A obsessão pela aparência pode levar à ansiedade e à depressão”, alerta.
Entender a gênese dessa relação obsessiva com a aparência do corpo tornou-se
um dos objetos de estudo da especialista. Na opinião de Mara Cristina, ela tem raízes complexas. “Há uma reconfiguração de valores. Os pecados, por exemplo,
não são mais interiores, mas exteriores ao corpo. Saíram da cama e foram para a mesa. Nesse contexto, excesso de peso, rugas e flacidez chegam a ser vistos
como algo impensável diante de tantos recursos para corrigi-los. São praticamente uma obscenidade”, diz a psicóloga, uma elegante mulher que não se incomoda
com algumas ruguinhas.
Sim. Hoje os transtornos da imagem corporal formam uma área importante do atendimento nas clínicas de psicologia. Na China, por exemplo, muitas jovens cortam os ossos para colocar implantes nas canelas. Uma chinesa explicou que queria ganhar dez centímetros na altura porque isso lhe permitiria ter um emprego melhor e um marido melhor. Nos EUA, uma pesquisa com ex-obesos também mostra a gravidade da situação. A pergunta era se a pessoa preferia perder uma perna a voltar a ser obeso. O resultado é que 91% disseram que perderiam a perna. Depois perguntaram se em vez de perder a perna o custo de manter a forma fosse ficar cego. A resposta foi no mesmo padrão.
Isso decorre de um pensamento corpocêntrico. As pessoas hoje são voltadas para o corpo. É uma cultura somática, permeada pelas novas descobertas da ciência, pela busca da boa forma, da saúde, da longevidade.
As pessoas estão muito mais interessadas no corpo. Dizem, por exemplo: “Não estou muito bem porque estou com tensão pré-menstrual. Estou com uma revolução hormonal dentro de mim.” Começam a falar de hormônios, colesterol, serotonina (substância envolvida no processamento das emoções). Chegam na clínica e falam que vieram fazer análise porque estão com déficit de serotonina. O que isso quer dizer? Eu pergunto sempre o que estão sentindo.
Sob o prisma das religiões, o corpo era visto como algo que poderia levar
ao pecado, que deveria ser objeto de um controle rigoroso. Era o corpo das sensações, do pecado. Mas o corpo deixou de ser a morada de Deus, deixou de
ser divino. Agora, ele pertence ao indivíduo, que se tornou responsável por ele e
pode fazer o que quiser.
As pessoas estão cada vez mais preocupadas com a imagem. Pensa-se: meu corpo é aquilo que eu desejo. Você pode ter a imagem que quiser. É a cultura do individualismo, do parecer alguma coisa. Há quem defenda que essa revolução que houve no consumo do supérfluo – os cosméticos ficaram bem mais acessíveis, por exemplo – democratizou as formas de cuidar do corpo. Mas ao mesmo tempo traz essa obsessão pela aparência, que leva as pessoas a terem muita ansiedade, depressão e tristeza.
Sim. Há três anos fizemos uma pesquisa com indivíduos sadios.
Analisamos 162 homens e 184 mulheres. Perguntamos se eles se preocupavam com a aparência e se perdiam pelo menos uma hora por dia pensando que não pareciam bem. O resultado foi que, no total, 69% das pessoas perdem uma hora
por dia achando que não têm uma imagem legal (57% dos homens e 80% das mulheres). Perguntamos também se algum aspecto da aparência realmente incomodava, se chegavam a ficar deprimidos, ansiosos, frustrados ou zangados
por causa dele. Nada menos que 62% responderam afirmativamente! Nesse
estudo, 13% dos entrevistados – alunos de faculdades da área da saúde – afirmaram tomar laxantes e diuréticos. É desesperador. Também observamos
que alguns homens, mesmo gordinhos e com barriga, se sentiam atraentes.
Com as mulheres, isso é raríssimo acontecer.
Quando perguntamos se as pessoas chegavam atrasadas aos compromissos porque detestavam a própria aparência ou estavam tentando melhorá-la, penteando-se, por exemplo, 33% responderam que fazem isso.
O lado bom é o fato de as pessoas viverem mais e se cuidarem mais.
Mas a questão não é o montante de cuidados que se tem com o corpo. É com
o significado que isso tem na vida.
Ela é mais vulnerável do que as outras ao modelo do corpo ideal. Vivemos à custa de um tipo de corpo que tem de ser jovem, ágil, bem-sucedido. Essa cultura da eficácia tem a sua oposição. Se o indivíduo é lento, enrugado, tem mais idade, não há lugar para ele neste mundo. Hoje, ser gordo, ter rugas, estrias, culotes ou flacidez é algo que praticamente é visto como uma espécie de obscenidade. Com tantos recursos, como a pessoa se deixa ficar assim? Antes tínhamos pecados interiores, como a culpa pela sexualidade, os desejos. Hoje o pecado aparece na exterioridade do corpo.
Exato. O campo da moralidade é uma moralidade alimentar. Não há mais pecado sexual. Há o pecado alimentar. Numa rodinha de mulheres, uma diz: “Ontem comi uma torta. E, perdido por um, perdido por mil. Tomei um licor e comi outra depois. Mas coloquei adoçante no cafezinho.” Aí começa a penitência. Os alimentos foram higienizados, pasteurizados, trazem a quantidade de calorias. Se você come um macarrão só com molho vermelho, pecado médio. Mas se pedir uma lasanha quatro queijos, está com vontade de pecar.
Sim. E isso alimenta uma indústria muito rentável, a indústria do corpo.
E quanto mais cultivamos essa lipofobia, mais aumenta o número de gordos.
É uma reconfiguração de valores. A ciência substituiu, no campo moral,
os dogmas religiosos no que se refere ao prolongamento da vida. Ela dita os imperativos que substituíram a religião. Diz: “Não comerás fritura, evitarás as gorduras saturadas, comerás carboidratos com moderação, não comerás
açúcar nunca.” O indivíduo que consegue ser magro, que tem aparência jovem,
é tido como moralmente disciplinado. E aquele que exibe os seus pecados é
visto como um coitado.
Pode. O sintoma é sustentado pela cultura ou deflagrado por ela. Na época das histéricas de Freud (Sigmund Freud, psicanalista), havia repressão da sexualidade. Hoje, vivemos essa loucura da estética. Acredito que essa doença traz novos sintomas, como o uso dos anabolizantes. Os jovens aplicam anabolizante achando que o corpo do homem tem de ser musculoso porque isso mostra serem fortes, corajosos. Mas chega o momento em que eles se olham no espelho e se vêem sempre flácidos, moles, apesar de terem muitos músculos grandes.
Sim. Chama-se vigorexia. É o aposto da anorexia. Enquanto a anoréxica está magérrima e se vê gorda, o vigoréxico está imenso, musculatura enorme mas se vê flácido. Ele continua tomando anabolizante incontrolavelmente. Houve um indivíduo que usou anabolizantes muito tempo e foi atendido por nosso grupo no Hospital das Clínicas. Ele estava com câncer no fígado e problemas renais, entre outros, mas ainda aplicava anabolizante porque se olhava no espelho e achava que ainda estava longe daquilo que queria ser. Ele estava cego. É tanta imagem, tanto espelho que o indivíduo tem uma cegueira da razão.
É o significado que você dá para isso. Por exemplo, esse fisiculturista que atendemos sabia que o corpo estava com nefropatia e continuava tomando anabolizante. Qual o significado que isso tinha para ele? É uma compulsão. Ele só tinha esse prisma. É como a anoréxica: ela pensa em comida, para não comer. A bulímica, que vive com ataques de comer e vomitar, também. Comer vira uma paixão única. E toda paixão única torna-se um monstro na vida. Existe a paixão única pelo trabalho, pela droga, pelo álcool, pelo corpo. Com a dieta, é a mesma coisa. Na segunda-feira, a pessoa começa o regime e entra com tudo numa compulsão por exercícios, refrigerante diet, comida light. Troca o objeto. E, da mesma forma
compulsiva que entrou na dieta, sai comendo.
O problema não está em você viver de dieta, e depois sair da dieta,
e ficar comendo como se estivesse em Roma. O problema está em achar o significado que isso tudo tem para você. Qual o significado de ser magro ou não na sua vida? Emagrecer é muito simples. Mas é preciso saber por que
você quer ou precisa fazer isso.
Sim, quando se pensa que ele está deixando de ser o veículo das sensações, do prazer. Ele é só uma aparência, um modo de aparecer. Então, cuida-se dele, moldando-o, em vez de lidar com as emoções. No meu consultório, atendi muitas mulheres que após o final do casamento resolvem fazer lipoaspiração ou lifting para rejuvenescer.
Hoje, nossa sociedade entende isso como uma atitude normal. Mas eu pergunto a uma mulher como essas que mencionei o que ela está sentindo por causa da separação. Diminuiu o amor por ela mesma, onde e como esse processo mexeu com ela. Não adianta mexer só no exterior.
Não podemos perder a capacidade de pensar. Caso contrário, o nosso futuro fica sendo algo como um tempo protocolar das intervenções que faremos no corpo. Aos 40 anos, é hora de aplicar botox. Aos 45, é o minilifting. Aos 60 anos, um lifting completo. Devemos separar o joio do trigo. Claro que acho fantástico gente de 80 anos andando, fazendo ginástica, bem cuidada. Mas você não é apenas o que o seu corpo é. Você é a sua história e seu corpo é parte dela.