Com a atenção do País voltada para o escândalo político do mensalão, a economia ficou mais livre para ser debatida. Ponto positivo: a constatação de que o receituário ortodoxo atingiu seu limite e que são necessárias novas alternativas para conciliar desenvolvimento econômico (leia-se juros minimamente aceitáveis) e combate à inflação (que continua em patamares altos). Foi nesse clima que as propostas de reduzir o gasto público e de zerar o déficit nominal ganharam adeptos na semana passada. Traduzindo do economês, déficit ou superávit nominal é a diferença entre todas as receitas e despesas do setor público, incluindo os gastos com o pagamento dos juros das dívidas públicas. Pelo menos três propostas com objetivos comuns para redução das despesas do governo tiveram as atenções de empresários, ministros, políticos e sindicalistas. O deputado e ex-ministro Delfim Netto (PP-SP) – atualmente um dos mais próximos interlocutores do presidente Lula – iniciou a semana buscando apoio empresarial e político à sua proposta de emenda constitucional (PEC) para definir como objetivo da política fiscal o equilíbrio entre despesa e receita nas contas públicas.

Na terça-feira 5, o deputado reuniu em Brasília boa parte da elite empresarial brasileira e personalidades do governo e da política para apresentar e discutir o
que passou a se chamar de “Plano Delfim”. O jantar avançou a madrugada e
contou com os ministros Antônio Palocci (Fazenda) e Paulo Bernardo (Planejamento), e o presidente da Câmara Federal, deputado Severino Cavalcanti (PP-PE). À saída do encontro, a avaliação era positiva, mas com algumas restrições quanto à DRU (desvinculação das receitas da união), que permitiria ao governo realocar as chamadas verbas “carimbadas” pela Constituição em áreas como
saúde e educação. Na quarta-feira 6, foi a vez de a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) defender o seu estudo, que propõe um forte ajuste
nas contas do setor público.

Choque – Na sede da entidade na avenida Paulista, 20 empresários e Palocci gastaram mais de duas horas debatendo o que, no final, o ministro acabou encampando e criando o que chamou de “choque de gestão”. Descartando a
idéia de ter como meta o déficit nominal zero, como quer Delfim, Palocci saiu do almoço com um discurso de adesão à proposta da Fiesp e já falando em
começar o “choque” pela Previdência Social, acenando com uma reformulação do cadastro dos benefícios. “O ministro gostou da nossa proposta porque ela levará
naturalmente ao déficit zero”, disse Paulo Skaf, presidente da Fiesp. Na verdade, a proposta da indústria paulista foi entregue ao ministro há mais de 90 dias. Nela,
a entidade propõe basicamente a redução de 2% no total das despesas públicas pelos próximos dez anos e uma série de medidas para dar mais eficiência às
contas do governo.

A proposta de Delfim Netto foi a que ganhou maior repercussão, tanto na mídia quanto entre os economistas. Mas nem todo o respeito como teórico de economia que o ex-ministro ganhou durante meio século de dedicação à ciência foi suficiente para fazer com que sua proposta ganhasse entusiastas. Na realidade, ela foi vista com bastante ceticismo. Seja por institucionalizar políticas fortemente ortodoxas (ao propor emenda constitucional), seja por apenas sinalizar queda de juros, sem ter como garanti-la. Na prática, a proposta do deputado irá elevar o superávit primário. O economista Paulo Nogueira Batista Jr. é um dos que discordam do plano de Delfim. “Fixar variáveis e metas econômicas não é uma questão constitucional. Não tenho notícia de que isso conste em alguma Constituição no mundo. A idéia é criar um ambiente de credibilidade que, supostamente, reduziria a carga de juros. Mas isso é incerto”, diz. Outra questão que desagrada ao economista é a camisa-de-força que a meta de déficit nominal zero colocaria na política fiscal (gastos do governo). Segundo o economista, “engessar a política fiscal não é recomendável”. Isso porque em certas ocasiões, como no caso de uma recessão, o Estado tem um papel decisivo para minimizar os custos sociais das crises econômicas.

Outro que desconfia do plano de Delfim é o economista do Instituto de Economia da Unicamp, Márcio Pochmann. “Delfim quer utilizar a sua velha receita de fazer crescer o bolo para depois dividi-lo. Só que, como no passado, ninguém viu mais o bolo”, diz ele. Pochmann preparou um estudo mostrando que, caso a proposta do deputado seja adotada, só o orçamento da Previdência vai sofrer um corte de R$ 19,7 bilhões, ou 11% do seu total. Na saúde, a redução alcançaria R$ 5,7 bilhões, o equivalente ao valor do tratamento de 1,1 milhão de pacientes com Aids. “Essa proposta seria o caos para a área social”, prevê Pochmann. Ele lembra ainda que o superávit primário de 4,58% do PIB em 2004 foi conseguido com 56% dos recursos da área social. “Com essa proposta, de cada três reais poupados, dois sairão da área social.” Pelo andar da carruagem, a polêmica redução dos gastos públicos está só começando.