A inclusão no programa de estímulo fiscal nos Estados Unidos de uma cláusula que obriga as empresas que vão executar as obras de infraestrutura a utilizar somente produtos siderúrgicos produzidos dentro do próprio país ("buy America"), as declarações do presidente da França, Nicolas Sarkozy, de que os recursos de ajuda às montadoras de veículos francesas deverão ser utilizados somente nas fábricas das empresas localizadas na própria França e as decisões de alguns países emergentes (Argentina, Rússia e China, entre outros) de aumentar tarifas de importações tornaram realidade as preocupações quanto a um aumento do protecionismo no mundo.

Ainda que não seja uma decisão isolada, a inclusão da cláusula "buy America" no programa de estímulo fiscal americano é emblemática porque existe unanimidade entre os economistas de que foram exatamente o aumento das tarifas de importações nos Estados Unidos e as retaliações por parte de outros países o principal estopim que acabou gerando a longa depressão dos anos 30 no mundo.

A questão do protecionismo não se esgota na área comercial. Com a estatização, de fato, dos bancos americanos e europeus, o protecionismo começa a se estender para o crédito. Bancos estatais dificilmente emprestam recursos para outros países que não seus países de origem. Nestas condições, a retração do crédito no mundo poderá durar mais tempo do que se espera. Isto é particularmente relevante para países emergentes, como o Brasil, que têm baixa taxa de poupança e, portanto, dependem de poupança externa para financiar seu crescimento.

Porém, um aspecto importante a ser destacado é a defesa que tem sido feita pelo governo brasileiro de maior liberalismo comercial. A desastrada tentativa de exigir licença prévia para importações foi rapidamente revertida por ordem do presidente da República, diante da forte reação contrária de parte importante do setor produtivo nacional. Este episódio mostra uma notável característica dos processos de reforma estrutural, qual seja, uma vez implementada a reforma, ela tende a se tornar cada vez mais irreversível.

O Brasil iniciou o processo de liberalização das importações e abertura da economia no final dos anos 80. Apesar da forte reação dos setores antes protegidos, o processo continuou se aprofundando, com altos e baixos, pelos anos 90 e início dos anos 2000. Várias empresas e setores industriais, que viviam protegidos da concorrência internacional por elevadas tarifas e, em alguns casos, até mesmo pela proibição de importação, tiveram que reduzir drasticamente de tamanho ou foram eliminados pela concorrência internacional.

Ao mesmo tempo, outros setores, que em seu processo produtivo utilizavam matérias-primas importadas cujos preços e qualidade deixavam muito a desejar, devido à proteção à produção doméstica, puderam recorrer a importações, a preços mais baixos e melhor qualidade do produto. Estes setores, que antes da abertura da economia mal conseguiam competir com as importações devido a seus elevados custos e baixa qualidade, com o tempo se tornaram exportadores líquidos.

Em outras palavras, ao mesmo tempo que os setores antes protegidos diminuíam de tamanho e viam seu poder político ser reduzido, os setores que dependiam da liberdade de importar para manter sua competitividade cresciam e aumentavam paulatinamente seu poder político. A reversão da decisão de exigir licença prévia para importar apenas mostra a força política dos novos setores produtivos no Brasil.

Esta postura de favorecimento de um comércio mais livre é relativamente nova por aqui. A tradição brasileira, desde meados dos anos 30 do século passado, é de forte protecionismo, principalmente do setor industrial. Esta tradição vigorou até muito recentemente, quando o País se recusou a negociar um acordo de livre comércio entre os países na América (Alca) e a assinar o Acordo de Compras Governamentais da OMC, que permite às empresas dos países signatários participar de concorrências governamentais entre eles. A mudança de postura mostra o pragmatismo e a capacidade de renovação do governo brasileiro. O irônico é que, caso tivesse assinado o Acordo de Compras Governamentais, o Brasil não seria afetado pela cláusula "buy America" do programa de estímulo americano. É o feitiço se virando contra o feiticeiro.

José Márcio Camargo é professor do departamento de economia da PUC/Rio e economista da Opus Gestão de Recursos