Muitos torcem o nariz para a idéia de se criar um conceito de alta gastronomia brasileira. Mas, entre os defensores da tese, o mais entusiasmado é o chef Alex Atala. Ex-DJ, ex-pintor de paredes na Europa, ex-estudante de hotelaria e gastronomia na escola belga Namur, esse paulistano de 37 anos, cabelos ruivos e corpo tatuado utiliza no seu restaurante, o D.O.M., em São Paulo, técnicas clássicas européias para potencializar o sabor dos ingredientes nacionais. Depois do sucesso de seu belo livro de pesquisas e receitas, Alex Atala – por uma gastronomia brasileira (Bei Editora, dois volumes, R$ 155), ele se prepara para lançar um estudo ainda mais ambicioso sobre as regiões produtoras de alimento no País, coisa que a turma do ramo gosta de chamar de terroir. Nesta entrevista a ISTOÉ, Atala, que em julho embarca para liderar uma semana de gastronomia brasileira na França, falou das origens dos ingredientes às técnicas para se refogar um feijão e fazer um singelo ovo frito.

ISTOÉ – Como definir a culinária brasileira?
Alex Atala –
É de terra, de terroir. Típica, diversa, perfumada, mas também com forte marca primitiva. Fotógrafos reclamam que pratos brasileiros não dão boas imagens. Isso ainda é em parte verdadeiro, mas hoje há chefs que sabem explorar o sabor e a imagem desses pratos. Esse para mim é o verdadeiro sentido de gastronomia: usar técnicas clássicas para potencializar o valor dos produtos poéticos que temos. Cará, tapioca, mandioquinha, sagu, palmitos nativos, abóbora, banana, goiaba, tucupi (o leite da mandioca), jambu (erva da região Norte que provoca sensação de dormência na boca), tudo isso pode gerar combinações delicadas. Os chefs franceses radicados aqui usam esses ingredientes dentro da lógica da cozinha deles. Eu tento ajudar na criação de uma imagem de alta gastronomia brasileira e de uma linguagem universal a partir da combinação e da manipulação desses ingredientes.

ISTOÉ – No seu livro, você diz que nada do que havia na cesta de Carmen Miranda era exclusivamente brasileiro.
Atala –
Verdade. Algumas frutas têm até origem tropical, mas não unicamente brasileira. A manga veio da Índia, o coco e o abacaxi são tropicais de origem asiática. A melancia é américo-mexicana. E a banana… bem, yes, nós temos bananas sim, mas as pesquisas mostram que os asiáticos tiveram antes.

ISTOÉ – Em julho, você será recebido no restaurante do Hotel Meurice, em Paris, do mesmo grupo do Plaza Athénée, para produzir uma semana de gastronomia como parte do ano brasileiro na França. O que vai fazer?
Atala –
Vou trabalhar com ingredientes da Amazônia, que oferece um imenso potencial de exploração e desenvolvimento. No restaurante, sirvo um peixe com um tucupi que leva jambu, mas o resultado é suave. Estou feliz porque ligaram dizendo que já não há mais vagas.

ISTOÉ – Qual é a maior qualidade da cozinha brasileira?
Atala –
O seu caráter exclusivo. Mandioquinha lembra mandioquinha, quiabo parece quiabo. Essa cozinha foi desdenhada, mas as coisas estão mudando. O (catalão) Ferran Adriá (um dos mais badalados chefs da atualidade, dono do El Bulli, em Girona, e amigo de Atala), acredita que o futuro da gastronomia mundial passará necessariamente pelo Brasil e pela China.

ISTOÉ – Como você conseguiu domar aquele batatão chamado cará?
Atala –
Costumo servi-lo na forma de purê, com confit de pato, stinco de cordeiro
ou outra opção. O cará tem um ponto de cremosidade intermediário entre a mandioca, com liga poderosa, e a batata, mais leve. O trabalho maior foi achar o ponto ideal para o purê.

ISTOÉ – O que é preciso para fazer um bom feijão em casa?
Atala –
É o típico caso em que menos é mais. Bacon, sal, louro e alho resolvem. Não encho de temperos. Também não queimo o alho, como muitas donas-de-casa fazem. Anula o sabor da maioria de seus óleos essenciais e dificulta a digestão. Há quem goste de feijão com coentro. Fica bom, mas ele deve ser usado fresco e com parcimônia, porque tem personalidade e cansa rapidamente o paladar. Em casa, resolvo 90% dos problemas com alho, cebola, sal, louro, manteiga, azeite, óleo e duas ou três dessas ervas frescas mais comuns. Se puder, prefira óleo de canola ou de milho ao de soja, que deixa gosto residual.

ISTOÉ – E o arroz?
Atala –
O mesmo pensamento: sal, um pouco de cebola, água potável e um abraço. É uma burrice o brasileiro abandonar o arroz com feijão, como está ocorrendo.

ISTOÉ – Sem alho?
Atala –
Prefiro arroz sem alho. Assim, o sabor dos outros pratos surge de
forma mais harmônica, sem confusões na boca.

ISTOÉ – Batata frita.
Atala –
Óleo bem quente e batata em pequena quantidade, descascada e cortada
na hora, sem ser mergulhada na água, para não perder sabor e textura. As pessoas mergulham verduras e legumes na água. Não sabem como isso rouba sabor e interfere na textura.

ISTOÉ – Você tem três filhos. O que a família Atala come quando bate aquela
fome e a preguiça para sair ou fazer algo mais elaborado é total?
Atala –
Uma carne ou um peixe grelhado com a maior simplicidade possível – sal, folhinhas de erva e um filete de azeite. Outra coisa que rola muito é um ovinho…

ISTOÉ – Bem lembrado. E o segredo para um
bom ovo frito?
Atala –
Lá em casa acham um ovinho frito com pão um atalho para o céu. Concordo plenamente. O segredo: superfície antiaderente, fogo o mais baixo possível e manteiga clarificada – se não houver, misture um teco de azeite na comum sem sal, para aumentar o ponto de resistência às altas temperaturas e impedir de queimar. O fogo brando serve para o ovo cozinhar lentamente por baixo, deixando a clara úmida, a gema levemente firme na base e mole no alto, a manteiga dando sabor. Há quem goste de duas ou três gotas de molho inglês, mas nós somos do grupo dos que consideram o ovo fiel e monogâmico – ou seja, ama apenas e para sempre o sal.

ISTOÉ – Impossível evitar a vontade de comer
ovo. Salada…
Atala –
Ingredientes frescos e temperados pouco antes de servir. Prefira comprar um pé de verdura inteiro do que trazer do mercado aquelas folhas separadas e lavadas, que mudam de sabor e duram pouco. A estrutura dos pés contribui para que esses alimentos durem mais.

ISTOÉ – A comida é o melhor caminho para conhecer um povo?
Atala –
Em qualquer lugar do mundo, não há ponto de interseção melhor
entre natureza e cultura do que um prato de comida, uma garrafa de vinho
e uma turma comendo feliz.