E o desencanto venceu a esperança. Atordoado com o impacto da mais
grave crise política do governo Lula, envolvendo a denúncia de uma mesada para comprar a fidelidade de deputados da base aliada à custa dos cofres de empresas estatais, o Brasil começou a se debater com uma dúvida impensável na crônica corrupção que assola o País: até tu, PT? Há quatro semanas, desde que um diretor dos
Correios se revelou nas telas da tevê embolsando R$ 3 mil de propina, o espanto aumenta, junto com a gula dos maus políticos pelo dinheiro público. Na semana passada, enfim, o manto da moralidade foi estraçalhado numa entrevista à Folha de S.Paulo do deputado Roberto Jefferson (RJ), presidente nacional do PTB – quarto maior partido da base aliada, com 47 deputados e três senadores –, acusando o tesoureiro do PT, Delúbio Soares, de dar uma mesada de R$ 30 mil (o “mensalão”) a parlamentares aliados do PL e PP em troca do apoio ao Palácio do Planalto.

A denúncia incendiou o Congresso, paralisou o governo, derrubou a Bolsa de Valores, disparou o dólar, chamuscou a bandeira ética do PT, ocupou manchetes da imprensa internacional e, mais do que tudo, chocou o País. Cinco ministros, um governador de Estado e o próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegaram a tomar conhecimento do “mensalão” ainda no ano passado, mas nenhuma providência foi tomada. Constrangido, Lula não se inibiu na terça-feira 7 com a presença de tantos estrangeiros em Brasília no IV Fórum Global de Combate à Corrupção, evento patrocinado pela ONU, para esboçar uma reação: “Não vamos acobertar ninguém”, avisou, apontando o dedo para o partido ao qual ajudou a fundar, 25 anos atrás, envolto na bandeira da ética política. “Cortarei na própria carne, se necessário.” E será. Na quinta-feira 9, o Congresso instalou uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar os Correios, com o apoio, inclusive, do PT – num contorcionismo inédito para um partido que brigava havia dias para abafar a CPI e foi forçado pelo próprio Lula a engolir a investigação que pode devassar suas entranhas.

No rastro do incêndio, o Planalto desencadeou
uma reforma política de emergência para, em
45 dias, tentar modelar um novo sistema partidário
imune à roubalheira e à compra de consciências,
que o próprio PT estimulou para não repartir os
gabinetes do poder com os aliados. De quebra, vem
aí uma implosão na máquina administrativa e um solavanco ministerial que o Planalto deve ao País. Na quarta-feira 8, Lula anunciou a dois ministros de sua confiança, numa reunião no Palácio: “Vou fazer uma reforma ministerial profunda, reduzindo os ministérios de 36 para 20 pastas.” O tsunami da Esplanada pode varrer José Dirceu e Aldo Rebelo de suas cadeiras na Casa Civil e na Coordenação Política. Outros membros do primeiro escalão que estão sendo investigados também devem perder os cargos, como o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, e o ministro da Previdência, Romero Jucá. Para o lugar de Meirelles no BC já há substituto: Murilo Portugal, secretário executivo do Ministério da Fazenda. O governo vai sangrar, como já sangra o PT, com sua mística e sua história, perante o desencantado eleitor brasileiro.

O mais decepcionado deles é o petista número 1 do País, Lula, que já começa
a admitir aos amigos mais íntimos o que ninguém imaginava antes do vendaval:
ele pode não disputar a reeleição. Dois anos e cinco meses depois de assumir, amparado por mais de 53 milhões de votos, o próprio Lula se perguntava,
irritado, numa conversa com assessores na terça-feira 7, como e quando começaram os erros do governo. A resposta estava na própria entrevista de Jefferson. “É mais barato pagar o exército mercenário do que dividir poder. É
mais fácil alugar um deputado do que discutir um projeto de governo. Quem é pago não pensa”, definiu, impiedoso, o acusador. Ou numa declaração anterior, mais branda, de outro aliado mais refinado, o ex-presidente José Sarney: “Falta política com P maiúsculo no governo.”

Pouco antes de assumir, o presidente Lula declarou que pretendia fazer um governo de coalizão com outros partidos. As negociações envolviam o maior partido do Congresso, o PMDB. E começaram marcadas por um caráter institucional – o tal “P” maiúsculo de que fala Sarney. Lula e o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, encontraram-se com os então líderes do PMDB na Câmara, Eunício Oliveira, e no Senado, Renan Calheiros, além do próprio Sarney e do presidente do partido, Michel Temer, para discutir a participação que teriam no governo. É claro, incluía-se aí a divisão dos ministérios entre o PT e os aliados e a definição de uma política comum. Mas logo o presidente se viu amarrado por seu partido. Do chamado Campo Majoritário à Democracia Socialista, passando pela Articulação de Esquerda ao Movimento PT, todas as tendências queriam ser contempladas e não havia tanto espaço assim para os novos parceiros. Talvez aí tenha surgido a idéia de que era mais barato comprar os aliados fisiológicos sem precisar dar-lhes poder. A aliança formal com o PMDB foi rechaçada e, mesmo assim, Lula acabou fazendo um Ministério de 34 pastas.

Engorda – Foi por essa época que começou a política com “p” minúsculo. Resolveu-se liberar às vésperas de cada votação, em troca do voto favorável ao governo, o pagamento das emendas que os parlamentares fazem ao Orçamento pedindo obras para suas bases eleitorais. Depois, promover uma política de engorda dos pequenos partidos, como o próprio PTB, o PP e o PL, cujos líderes estavam sob maior controle do Planalto. Daí, segundo Jefferson, veio a mecânica do “mensalão”, que ele promete dissecar na terça-feira 14, quando irá depor no Conselho de Ética da Câmara. Jefferson vai repetir o que já disse a poucos aliados: o morcego petista – na figura do tesoureiro do partido, Delúbio Soares – sobrevoava algumas estatais, retalhadas entre os partidos e seus aliados, recolhia contribuições e as repassava para mãos de confiança em Brasília. A essas “mãos de confiança” Jefferson dá nome e número do título de eleitor: o presidente do PL, Valdemar Costa Netto, e o líder do PP na Câmara, José Janene. Testemunhas constrangidas contaram à reportagem de ISTOÉ que, num apartamento da Superquadra 311 Sul, onde fica a residência oficial de muitos deputados, o dinheiro pousava regularmente em maços de notas previamente separados. “Os carros estacionavam, um ao lado do outro, e o deputado subia ao andar quando recebia o sinal de que o outro já estava descendo. Mas às vezes congestionava no corredor. Era muito chato”, conta um motorista que se lembra, envergonhado, da cena.

O escândalo do “mensalão” fez com que o medo
invadisse a constelação petista, hoje assustada
com o exemplo dos venerandos partidos socialistas europeus que nos anos 80 e 90 se afundaram em denúncias de corrupção – como o PS de Bettino Craxi, primeiro líder socialista a governar a Itália (1983-1987). Atingido em cheio por denúncias a partir da famosa “Operação Mãos Limpas”, ele acabou sendo obrigado a se refugiar na Tunísia, onde morreu cinco anos atrás. O PT enrolou a bandeira do socialismo na vitoriosa campanha de 2002, para desconforto da esquerda do partido, mas a perda do estandarte ético no lamaçal do “mensalão” pode ser uma trombada fatal com sua história e sua militância mais fiel. A denúncia de Jefferson deixou os petistas vermelhos de vergonha dentro e fora do Congresso, onde até mesmo parlamentares de outros partidos estavam surpresos com o intenso sentimento de repúdio e asco da sociedade com a classe política. Ao embarcar no vôo de São Paulo para Brasília, na segunda-feira 6, o deputado Devanir Ribeiro (PT-SP), um dos parlamentares mais próximos a Lula, sentiu a espinha gelar: “Eu estava com vergonha de tudo isso. Temia que alguém fosse fazer alguma piada comigo.” A pressão sobre os petistas começa agora em casa. Um dos 13 parlamentares petistas ameaçados de punição há uma semana por ter assinado requerimento pela CPI, Walter Pinheiro (BA), desabafava nos corredores da Câmara: “Os meus três filhos estão revoltados. Os governos passam, mas os partidos ficam.” Do mesmo grupo dissidente, Ivan Valente (SP) é um dos mais revoltados com a cúpula nacional da sigla e com o próprio governo: “A fronteira da ética para o PT é vital. O PT é um patrimônio maior do que aqueles que se sentem donos do partido, são autoritários”. Chico Alencar (RJ) teme que a bandeira mais cara ao PT, a da moralidade pública, comece a escapar das mãos do partido: “Cada vez mais as pessoas desacreditam da política como instrumento de mudança de suas vidas. E isso acontece justamente no governo Lula. Fomos chicoteados em nossa própria história. É uma tragédia”, lamenta.

Moderação – O medo da tragédia não invade só
os petistas. Na segunda-feira em que saiu a
entrevista, o ex-presidente Fernando Henrique telefonou para diversos tucanos pedindo moderação. O líder do PSDB no Senado, Arthur Virgílio Netto, foi à tribuna oferecer-se para um acordo em torno da governabilidade. O medo do PSDB é que, com o agravamento da crise, sobrevenha o caos, pondo por terra até mesmo os planos dos tucanos de vencer as eleições de 2006. “A verdade é que o PT e o PSDB são os partidos que têm projetos de País. Podem ser discordantes, mas são os únicos que têm projetos razoavelmente consistentes. Não interessa a nenhum de nós um fracasso completo das instituições, que só beneficiaria opções extravagantes e aventureiras de poder”, explica o líder do governo no Senado, Aloizio Mercadante.

O espetáculo de compra em massa de lealdade forçou um fenômeno raro: da esquerda à direita, os parlamentares voltaram a falar num velho tema – a reforma política. Lula pegou o mote e, na quarta-feira 8, ao dar posse ao novos membros dos Conselhos Nacional de Justiça e do Ministério Público, anunciou uma nova moldura político-partidária para o País, a ser apresentada ao Congresso no prazo recorde de 45 dias. Na quinta-feira 9, o Tribunal Superior Eleitoral deu outra má notícia ao tesoureiro Delúbio. Com cinco dos sete votos em plenário, o TSE derrubou o dízimo cobrado por partido político de filiado em cargo comissionado – prática que só o PT tem. No ano passado, a contribuição compulsória de 800 mil filiados do PT, que morde de 1% a 20% do salário dos mais graduados, rendeu R$ 3,3 milhões ao caixa do doutor. Delúbio. Só na área federal, estima a oposição, o guloso PT ocupa 80% dos 19 mil postos de confiança. O escândalo do “mensalão” vai cortar na carne do PT. A decisão do TSE vai cortar no bolso. Ambos doem.