A criatividade de uma turma de adolescentes baderneiros, que vivia faltando às aulas numa escola
pública da periferia de São Paulo, virou objeto de estudo do principal centro americano de pesquisas sobre o futuro. O que mais impressionou os cientistas do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), em Boston, foi que, embora inovadora, a idéia dos garotos de 14 a 16 anos chegava a ser simplória.

Eles desmontaram um teclado de computador para construir um ônibus inteligente. Instalaram motor, quatro
rodas e sensores nas teclas, que funcionavam como se fossem os bancos, e impediam que o ônibus parasse nos pontos se todos os assentos estivessem ocupados. O objetivo do trabalho era encurtar a penosa jornada que seus pais enfrentam todos os dias para ir e voltar do trabalho. E assim diminuir a violência doméstica e nas ruas do bairro onde vivem. De quebra, os adolescentes aprenderam geometria, mecânica, eletrônica e informática. Tudo na prática.

“O que falta é acesso e oportunidade justa para que todos os brasileiros
possam tirar vantagem desse espírito criativo e cultural, traduzido pelo
famoso jeitinho brasileiro”, dizem os cientistas Walter Bender, diretor
executivo do Laboratório de Mídia do MIT, e David Cavallo, especializado no
futuro do aprendizado. “O talento humano, a experiência técnica e a criatividade
fazem do Brasil um potencial líder na sociedade mundial da inovação e do conhecimento”, afirma Bender, cujo laboratório trabalha na criação de máquinas capazes de lidar com emoções, a exemplo de HAL-9000, o cérebro eletrônico do filme 2001: uma odisséia no espaço, de Stanley Kubrick.

Na semana passada, Bender e Cavallo visitaram autoridades do governo em Brasília, empresários em São Paulo e acadêmicos em Porto Alegre para apresentar uma de suas sugestões para promover o acesso de mais brasileiros ao universo virtual. A invenção é um laptop de US$ 100 (cerca de R$ 240) que as crianças de países como o Brasil e a China levariam para casa, como se fossem livros. O computador portátil foi exibido pela primeira vez em janeiro, na reunião do Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça. O pulo do gato da máquina com 128 megabytes de memória, disco de 5 gigabytes e bateria de três horas de duração está na tela, que funciona como um projetor de imagens. No final deste mês, o próprio inventor da geringonça, o pesquisador americano Nicolas Negroponte, fundador do MIT, virá ao País para negociar a produção do laptop com o governo.

Novidadeiros, os brasileiros demonstraram sua pujança no mundo virtual. Formam
a comunidade mais numerosa no Orkut, a mais popular rede virtual de relacionamentos. Pelo menos 70% dos quase seis milhões de cadastrados se declaram brasileiros. O País também ocupa a liderança em páginas pessoais com fotos, os chamados fotologs. E ultrapassou o Japão em horas dedicadas à navegação. Gastamos 15 horas e 14 minutos todos os dias na rede, uma hora e meia a mais do que em abril de 2004. Enquanto isso, os japoneses ficam 14 horas
e 20 minutos navegando.

Negócios – Com apenas dez anos de operação comercial, celebrados na terça-feira 31, a internet nacional revela sinais de maturidade. Os principais são o comércio eletrônico e o volume de transações eletrônicas entre empresas. Em 2002, havia 6 mil lojas online, que movimentaram R$ 4 bilhões em compras e vendas. Este ano, a previsão é de que as 17 mil lojas faturem R$ 9,8 bilhões. As transações entre as empresas, batizadas de B2B, também cresceram. Há três anos, eram 40 mil empresas, que negociavam R$ 109,5 bilhões. Para este ano, a previsão é de que o número de companhias dobre, movimentando mais de R$ 200 bilhões na rede.

Idealizada para informar e comunicar de forma barata e eficiente, a internet produziu uma mudança sem precedentes na economia e na sociedade. Além de encurtar distâncias, inaugurou uma forma de trabalho descentralizada, sem hierarquia, com transparência, em que a colaboração de muitos pode criar produtos e idéias capazes de substituir as corporações tradicionais.

No fundo, a tecnologia aumentou a habilidade das pessoas em dividir e compartilhar idéias. Tudo começou com o movimento do software livre, também chamado de código aberto porque vem com uma espécie de receita de como foi escrito, para poder ser alterado por quem quiser. Essa é a mágica por trás do Linux, o sistema operacional que provoca calafrios na Microsoft, dona do Windows, programa instalado em nove a cada dez PCs do mundo.

Criado pelo jovem finlandês Linus Torvalds em 1991, o Linux recebeu contribuições de programadores do mundo todo, que não ganharam nada em troca. O resultado não pertence a ninguém, mas é de livre acesso a todos. E atribui ao consumidor
um poder de decisão poucas vezes visto na história.

Formigas – Se a internet aprimorou a modalidade de trabalho colaborativo, o grande precursor desse método foi o software livre, tão revolucionário quanto a linha de montagem no século passado. Para o sociólogo catalão Manuel Castells, autor da trilogia A era da informação, o software livre é como o alfabeto. “Você pode escrever um poema ou um livro comercial. O software é a escritura da era da informação”, compara.

O princípio do código aberto se espalhou por outras áreas, como a biologia, a pesquisa genética, a exploração do espaço e a informática. “A internet tirou o gênio da garrafa e agora se passou a questionar coisas como propriedade intelectual. Mas fica difícil convencer a sociedade de que o gênio deve voltar para a garrafa”, diz o húngaro Imre Simon, professor da Universidade de São Paulo (USP). Segundo ele, a história tem outros exemplos de trabalho cooperativo como o dicionário de inglês Oxford, criado no século XIX. “A diferença é que com a internet isso está ao alcance de todos.”

Há quem enxergue mais longe. “As trocas sociais representam um terceiro modo de organização da economia de produção, ao lado dos mercados e do Estado”, diz um dos maiores papas no assunto, Yochai Benkler, da escola de direito da universidade americana de Yale. É a famosa lógica de organização das formigas, em que vários membros da comunidade trabalham pelo bem comum.

O computador mais poderoso do planeta não é de nenhum fabricante, apesar de americanos e japoneses disputarem essa primazia. É a rede de voluntários do projeto Seti (www.seti.org), que agrega o poder computacional de quatro milhões
de máquinas, que emprestam sua capacidade ociosa para decodificar sinais de rádio em busca de vida extraterrestre.

Música – Há outros exemplos do esforço cooperativo em que voluntários compartilham seu tempo, talento e conhecimento em prol de obras comunitárias. O principal deles é a enciclopédia livre Wikipedia (www.wikipedia.org), feita por colaboradores anônimos e mantida por uma entidade sem fins lucrativos. Hoje ela tem mais de meio milhão de artigos em 80 idiomas – 50 mil em português. Outro exemplo é o projeto Gutenberg (www.gutenberg.org), força-tarefa na qual voluntários transcrevem textos de autores clássicos em um catálogo com 15 mil livros digitais.

Além da informática, a indústria da música foi a que mais sofreu o impacto desse fenômeno. No dia 14 de julho de 1995, aniversário da tomada da Bastilha, foi
criado um padrão de compressão batizado de mp3, que reduzia a música digitalizada a um décimo do seu tamanho, o que facilitava sua transmissão pela internet. Daí para a frente tudo mudou. De uma hora para outra, bandas desconhecidas não precisavam mais das gravadoras para promover suas músicas. Enquanto isso, bandas conhecidas viram seus discos serem compartilhados na rede, sem
receber um tostão. As cinco grandes gravadoras, Universal, EMI, Warner e Sony-BMG (que acabam de se fundir), puseram suas guilhotinas para funcionar contra
artistas e internautas.

Assim como ocorreu com outras invenções, o novo sempre parece ameaçar o que é antigo. Um exemplo é o bispo Claude Frollo, personagem do francês Victor Hugo em O corcunda de Notre Dame. Frollo temia que o livro e o alfabeto impresso matassem as catedrais. E que com a impressão das primeiras Bíblias ninguém mais fosse à Igreja para ouvir as pregações. Como se viu, ele não poderia estar mais enganado.