A França, país fundador da União Européia e um dos principais pesos econômicos e políticos do continente, se tornou, na última semana, o primeiro membro da comunidade a rejeitar o tratado que estabelece uma Constituição para a Europa. No referendo do domingo 29, a maioria dos eleitores, 54,87%, respondeu “não” ao projeto, contra 45,13%, que optou pelo sim. O índice de participação, 69,34%, é recorde para um escrutínio sobre uma questão européia e só se compara à participação registrada em setembro de 1992, quando os franceses foram consultados sobre o Tratado de Maastricht, que definiu a criação da moeda única. Dias depois do terremoto francês, na quarta-feira 1º , uma nova onda de choque, embora previsível, abalou a Europa: 61,6% dos holandeses rechaçaram a Constituição, contra 38,4% que a aprovaram. Como para a Constituição vigorar tem que ser aprovada pelos 25 países do bloco, os líderes europeus temem agora um efeito dominó. Nove países, entre eles Alemanha, Itália e Espanha, já ratificaram o documento. Os outros 15 devem fazê-lo até novembro de 2006.

No caso da França, a vitória do “não” derrotou tanto a centro-direita governante como a maioria da esquerda socialista, que faziam campanha aberta pelo “sim”. Também a grande mídia e a intelligentsia francesa saíram chamuscadas. Os vitoriosos, da extrema esquerda à extrema direita, faziam uma estranha parceria. Mas o principal derrotado foi o presidente Jacques Chirac, que teve de trocar o primeiro-ministro Jean Pierre Raffarin por Dominique Villepin.

Incerteza – Ainda que políticos e analistas tentem evitar cenários catastróficos, o futuro do tratado constitucional europeu é incerto. “Sem o apoio da França e com o voto negativo de outros países, o tratado está morto”, afirma Sebastian Kurpas, do Centro para Estudos Políticos Europeus (CEPS), em Bruxelas. “Mas é possível que a União Européia ainda tente uma solução alternativa, fazendo passar os artigos a granel, ou que a França e os outros países que votaram ‘não’ por referendo encontrem uma brecha na legislação para fazerem passar o texto”, opina Kurpas.

A Constituição européia deve substituir todos os textos que regem atualmente a União Européia. O papel das políticas econômicas do bloco é um dos aspectos mais controversos do tratado constitucional. Cerca de dois terços dos 448 artigos do projeto são consagrados a essas políticas. Uma anomalia, na opinião de alguns economistas. “Nenhum texto constitucional dos países democráticos define as regras da política econômica com tanta minúcia”, afirma Dominique Plihon, economista e presidente do conselho científico de ATTAC (iniciais de Associação por uma Taxa sobre Transações Especulativas para Apoio aos Cidadãos).

Na França, os partidários do “não” afirmam que o tratado consagra um modelo
de economia liberal, no qual a competitividade e a concorrência primam sobre as políticas públicas e sociais. Denunciam também a rigidez da política monetária européia, que, em nome da estabilidade de preços, reduz a margem de manobra dos governos nacionais e consagra a independência do Banco Central Europeu. O documento institucionaliza o Pacto de Estabilidade e Crescimento, assinado em Amsterdã em 1997, que obriga o países aderentes a conter o déficit público abaixo de 3,5% do Produto Interno Bruto de cada país e a dívida abaixo dos 60% do PIB. A contenção do déficit é criticada pelos economistas não-ortodoxos, que acreditam
que os gastos públicos podem servir de instrumento de incentivo econômico em caso de ameaça de recessão e, diante disso, os Estados deveriam poder ultrapassar a barreira dos 3%, como ocorreu com a França e a Alemanha no
começo dos anos 2000.

Chefes de Estado e de governo vão tentar, agora, salvar o que podem do processo de ratificação do tratado, enquanto se preparam para a próxima reunião da Cúpula Européia, nos próximos dias 16 e 17 de junho, em Bruxelas, onde devem lançar um apelo à continuidade das ratificações à Constituição. Resta saber agora se os europeus poderão superar a crise ou se as contradições vão engessar, de vez, o processo de ratificação da Constituição Européia.