08/06/2005 - 10:00
Ao acordar na quarta-feira, 1º, o humor do presidente Lula estava azedo. Os jornais do dia mostravam, pela primeira vez em dois anos e meio, duas curvas sincronizadas para baixo nos índices da economia e da popularidade do presidente. Números em queda nos dois bastiões mais sólidos do governo Lula misturaram os ingredientes mais picantes da economia com os temperos amargos da política, entornando o caldo quente em que se misturam juros altos, CPI, desaprovação da opinião pública, denúncias de corrupção, rebelião na base aliada, descoordenação política e as primeiras estocadas da sucessão presidencial de 2006. O azedume presidencial começou na véspera, quando Lula chamou ao Planalto, na manhã de terça-feira, os ministros Antônio Palocci (Fazenda), José Dirceu (Casa Civil) e Paulo Bernardo (Planejamento) para digerir os dados indigestos do magro PIB de 0,3% do primeiro trimestre de 2005, apurados pelo IBGE, que fez a previsão de crescimento de 2005 definhar de 3,5% para 2,5%. Lula ficou assustado com a queda de 0,6% no consumo das famílias no primeiro trimestre do ano. Pior ainda foi a constatação do Ipea: a pobreza aumentou. Já existem 21,9 milhões de indigentes no País. À tarde, o ânimo no Planalto despencou junto com a queda de popularidade de Lula, medida pela pesquisa CNT-Sensus. A aprovação caiu para 57,4% e a desaprovação subiu para 32,7%, excitando a oposição e assustando a base aliada. Lula ainda é o favorito para 2006, mas teria que enfrentar um segundo turno contra o prefeito José Serra (PSDB-SP), enquanto Anthony Garotinho (PMDB-RJ) se consolida na casa dos 12%.
O dilema dos juros
Iniciada em setembro, a escalada dos juros imposta pelo Banco Central apareceu com força nas estatísticas econômicas. Os primeiros três meses do ano mostraram crescimento de pífio 0,3% no Produto Interno Bruto (PIB) em relação ao último trimestre do ano, muito próximo de uma estagnação. O resultado só foi positivo por causa da agropecuária, que registrou aumento de 2,6%, puxado pela soja e pelo arroz. A atividade industrial caiu 1% e os serviços, 0,2%. O número surpreendeu economistas e desencadeou um processo de rebaixamento das taxas de crescimento estimadas para 2005. Bancos e analistas apostam agora que neste ano o PIB, que soma toda a riqueza produzida no País, terá um aumento entre 2,5% e 3% em comparação com 2004. Trata-se de um resultado medíocre para um governo que se propunha a promover um “espetáculo de crescimento”. Só como referência, para conter o aumento das taxas de desemprego é preciso que o PIB cresça em torno de 4,5%. Em público, o governo faz pouco-caso do número. Na quarta-feira 1º, um dia depois que o IBGE anunciou seus dados decepcionantes, o presidente Lula insistiu: “Se o ano passado foi uma bela surpresa, este ano vai ser outra bela surpresa.” O ministro da Fazenda, Antônio Palocci, seguiu a toada, no seu costumeiro estilo contido: “O crescimento não está comprometido este ano. Houve uma acomodação.”
Mas, entre quatro paredes, o presidente se preocupou com um dado em especial: o consumo das famílias, que registrou queda de 0,6% no trimestre em relação ao trimestre anterior. Em outras palavras, as famílias brasileiras estão cortando gastos, apertando o cinto, sofrendo com a política monetária empreendida pelo Banco Central. Trata-se de uma péssima notícia para um presidente que pretende a reeleição. Notícia ruim veio também do lado da carga tributária. Segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), os impostos já somam 41,6% do PIB no primeiro trimestre deste ano ou 1,59 ponto porcentual acima do registrado no mesmo período de 2004.
Desinvestimento – Para os economistas, a preocupação se concentrou em outro item do PIB, que mostrou queda bem mais acentuada: os investimentos. “O Banco Central buscava controlar o consumo, mas atingiu também os investimentos”,
diz o ex-diretor do BC, Carlos Thadeu de Freitas, para quem o aperto monetário é
um exagero e persegue uma meta inflacionária de inalcançáveis 5,1%! Os investimentos, que incluem, por exemplo, o dinheiro que indústrias aplicam em novas instalações, máquinas e equipamentos para expandir a produção e elevar
a produtividade, caíram 3,9% em relação aos últimos três meses de 2004, que já havia registrado queda de 3%. E é o volume de investimentos que determina a capacidade da economia de crescer meses à frente. Reduzir investimento, dizem
os especialistas, significa comprometer o futuro.
Diante desses números, a boa notícia é a perspectiva de que, quem sabe, o
BC não produza nova má notícia no mês que vem. “Até agora, a inflação surpreendia pela resistência em cair, mas os índices começam a mostrar queda mais consistente”, diz o diretor de estudos macroeconômicos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Paulo Levy, avaliando que talvez a escalada dos juros esteja perto do fim.
A ameaça do câmbio
Queda livre: dólar chega a R$ 2,40
Além do PIB pífio, outro indicador causa dor de cabeça ao setor que mais alegrias tem dado ao governo Lula: o exportador. A cotação do dólar, em queda livre há meses, está na casa dos R$ 2,40, a mais baixa desde meados de 2002. O dólar baixo torna os produtos brasileiros mais caros lá fora e, portanto, menos competitivos. Olhando os resultados recentes das exportações, que acumulam um recorde de US$ 9,8 bilhões no trimestre, Palocci torce o nariz para as críticas. “Desde janeiro de 2003, os críticos do câmbio prevêem uma crise três meses à frente. Ocorreu o contrário”, diz. Para economistas ligados ao setor produtivo, Palocci pode até não admitir, mas as exportações já estão sentindo o golpe. Em alguns segmentos de mão-de-obra mais intensiva, como o de calçados, têxteis, brinquedos e móveis, já existe ameaça de demissões por causa da constante desvalorização da moeda americana. No caso dos brinquedos, a Abrinq, associação que reúne as empresas do setor, calcula que o faturamento já caiu 7% este ano. Segundo um levantamento do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), cujos dados foram dessazonalizados, as exportações não crescem desde o início do ano e, em maio, declinaram 0,8% em relação a abril. O saldo comercial também foi 22% inferior ao de abril em valor. “Esse câmbio não deixa as exportações evoluírem”, diz Júlio Gomes de Almeida, diretor executivo do instituto. Para muitos economistas, os resultados daqui para a frente serão cada vez menos brilhantes. Mas, para alguns economistas, o curto prazo é o que menos importa. A questão é estratégica. Ao comprimir o ganho dos exportadores, o real valorizado também impede que novos empresários brasileiros se lancem no comércio internacional. Com isso, o Brasil perde a chance de fortalecer o setor, ganhar novos mercados e reforçar a musculatura da economia nacional.
O aumento da pobreza
Balança: desemprego aumenta e renda cai
Penúltimo lugar em termos de distribuição de renda entre 130 países – só ganha de Serra Leoa, na África –, o Brasil ainda não aprendeu a dividir o bolo e continua aumentando o contingente da população de miseráveis. Foi o que mostrou uma pesquisa do Ipea, divulgada na quarta-feira 1º, pelo ministro do Planejamento, Paulo Bernardo. Segundo o documento, intitulado “Radar Social 2005”, mas que foi baseado na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) do IBGE, de 2003, 53,9 milhões de pessoas, ou 31,7% da população brasileira, vivem com menos de meio salário mínimo, na época, equivalente a R$ 120. Outros 21,9 milhões são considerados indigentes e sobrevivem com menos de um quarto do mínimo (R$ 60). É o pior dos mundos. Para quem esperava do governo Lula uma redução nos números da miséria brasileira, os dados do Ipea só aumentaram o grau de decepção, especialmente entre aqueles que sentem na pele a realidade de não ter o que comer. A verdade é que entra governo, sai governo e a população que vive abaixo da linha da pobreza só aumenta. Excesso de burocracia, incompetência e corrupção têm sido os responsáveis para que os programas sociais governamentais permaneçam no papel. O Bolsa-Família, por exemplo, principal programa do governo Lula e que tem como meta atingir 11,2 milhões de famílias ou cerca de 45 milhões de pessoas ainda patina em entraves burocráticos, desvios e corrupções. Outro que ainda não mostrou resultados foi o Primeiro Emprego, fundamental para combater o desemprego entre os jovens. De 1995 para 2003, o número de desempregados aumentou de 6,2% para 10%. A reforma agrária, outra maneira de combater a pobreza, também não sai do discurso. Mas, como o próprio estudo aponta, os programas sociais têm limite e sozinhos não resolvem os problemas. Crescimento econômico, com geração de emprego e renda, é que pode diminuir o fosso que existe entre os muito pobres ou indigentes, como mostra o documento do Ipea, e os pobres. Ser pobre para quem não tem o que comer pode ser o melhor dos mundos.
Caldeirão de mágoas
Eleitores e consumidores começam a compartilhar o mesmo sentimento de dúvida em relação ao País. Na economia, o noticiário, contaminado pela política, fez subir de 25,8% para 28,2% o índice de brasileiros que consideram a situação econômica pior do que há seis meses, apurou a Fundação Getúlio Vargas. Já a CNT-Sensus acusou o descolamento da opinião pública diante da ostensiva oposição do Palácio do Planalto a uma eventual CPI dos Correios: 86% querem o que Lula não quer – investigar as denúncias de corrupção envolvendo a direção dos Correios, militantes do PT e parlamentares do PTB. E o País voltou a ver a inversão de papéis entre PT e PSDB, um pedindo hoje o que o outro combatia ontem. “A oposição, que não tem um candidato para enfrentar Lula, quer antecipar o palanque. Mas não é hora de palanque”, reagiu o ministro Aldo Rebelo, da Articulação Política. “Palanque para a oposição se dá quando o governo faz todo o esforço para barrar a CPI”, revidou o deputado Chico Alencar (PT-RJ), reagindo pela esquerda petista contra a manobra palaciana.
O racha nessa questão fez o comando do partido banir o rebelde senador Eduardo Suplicy (SP) da executiva nacional e vetar previamente a pré-candidatura do senador Cristovam Buarque (DF) ao governo de Brasília. O que agrava o nervosismo é a eleição direta no PT em setembro, quando o presidente José Genoino vai enfrentar outros quatro candidatos situados à esquerda, todos disputando os votos de 800 mil filiados do País, num confronto que pode colocar a base cada vez mais inquieta em aberto confronto com a cúpula cada vez mais palaciana. Os militantes do PT parecem desconfortáveis com a aliança à direita com partidos como PP e PTB, hoje estigmatizados pelos deputados Severino Cavalcanti e Roberto Jefferson. “O que fazer? Contrariar o poderoso Severino e jogar os preciosos votos de Jefferson na oposição?”, pergunta-se um indeciso assessor de Lula. O presidente não mexe na equipe ministerial, com medo de abrir novas fendas em sua frágil base aliada, e a inércia do poder impede qualquer reforço potencial ao governo. Lula não mexe nem remexe, e a idéia de paralisia política se cristaliza num governo aparentemente sitiado numa crise de confiança que mina sua unidade e contamina o Congresso.
Numa situação de desorganização política, não se sabe ao certo quem articula. Nos últimos dias, o ministro Palocci transferiu-se para uma sala ao lado de Lula, no terceiro andar do Planalto, para colocar o peso de sua caneta a serviço da operação-abafa. “O coordenador político sou eu”, esclareceu Aldo Rebelo. “No governo não tem ministro com perfil técnico. A responsabilidade de Palocci é, antes de tudo, política”, ecoou o ministro José Dirceu, negando a pasmaceira: “Não vejo nem o governo nem o Congresso paralisados. O governo está governando.” Não é o que pensa o deputado Delfim Netto (PP-SP), que vê esgotada a receita de combate à inflação baseada em juros altos: “O governo vai pagar caro se não fizer o ajuste. Lula vai repetir em quatro anos o período medíocre de oito anos de FHC.” Enquanto a base aliada se remói em dúvidas, a oposição cresce na desgraça oficial. “Um governo que pretendia ficar oito anos no poder está chegando ao fim em dois anos e meio, antes do que se imaginava”, cutuca o líder do PFL no Senado, José Agripino Maia (PFL-RN). O Ipea abala o triunfalismo oficial, revelando que 54 milhões de brasileiros, um terço da população, são pobres sobrevivendo com R$ 4 por dia. Outros 22 milhões, na faixa de indigentes, vegetam com R$ 2 diários. Nos extremos da pirâmide, 18 milhões de brasileiros mais ricos concentram 13% da renda nacional, o mesmo que os 90 milhões dos brasileiros mais pobres. Como exemplo de inépcia administrativa, a oposição contabiliza R$ 271 milhões investidos pelo governo nos cinco primeiros meses do ano, enquanto pagava R$ 296 milhões por dia só de juros. “Lula está em rota de colisão com a opinião pública. As pesquisas mostram a economia esfriando e a popularidade em queda, e o presidente ainda diz que o País vai se surpreender. Ele reage como um autista que não absorve a realidade”, observa Agripino.
O líder do governo na Câmara, Arlindo Chinaglia (PT-SP), acha que a oposição não tem como comparar os governos Lula e FHC. “Quando a Polícia Federal invadiu a casa do Chico Lopes, presidente do Banco Central, FHC ligou de Londres e mandou demitir o superintendente da PF no Rio de Janeiro”, diz o líder, esquecendo que o delegado e os dois agentes que prenderam o marqueteiro Duda Mendonça numa rinha de galo no Rio também perderam seus empregos no atual governo. Agora, o Planalto não quer perder a rinha. Pretende barrar a investigação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, onde tem maioria, antes de chegar ao plenário. O relator do recurso anti-CPI, deputado Inaldo Leitão (PL-PB), deve apresentar um texto que pode viabilizar a manobra governista. Se isso não acontecer até quarta-feira 8, o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), promete indicar os membros da CPI. Se ela morrer na Câmara, a maioria oposicionista do Senado, no qual 52 dos 81 senadores querem investigação, promete ressuscitar uma CPI exclusiva: na quinta-feira 2, o senador Jefferson Perez (PDT-AM) garantia ter 16 assinaturas e outras 14 prometidas para abrir a comissão – três acima do mínimo necessário. Na conversa de duas horas com Renan, na quinta-feira 3, Lula não falou em reforma ministerial e mal tocou em CPI. O caldeirão do Planalto ferve cada vez mais, e o presidente cozinha com ele.
Boas novas …
…para Garotinho
Ines Garçoni
Dia após dia, nada de bons ventos soprarem para os lados do Palácio do Planalto. Muito pelo contrário. Na última semana, a divulgação da pesquisa CNT/Sensus trouxe várias notícias ruins de uma só vez para o governo. Revelou que aumenta a insatisfação da população com a administração federal. A avaliação positiva do desempenho do presidente Lula só esteve mais baixa em março do ano passado, ao atingir 34,6%, logo depois do caso Waldomiro Diniz, quando o ex-assessor de José Dirceu surgiu envolvido num escândalo de corrupção. A atual pesquisa revela também um dado inédito, que piora o cenário: pela primeira vez, a corrupção tornou-se o principal motivo para que o brasileiro não se orgulhe de seu país, ultrapassando a violência. E para completar o quadro, reforçou a tese de que uma possível candidatura de Anthony Garotinho (PMDB) à Presidência em 2006 dará muito trabalho ao presidente.
O imbróglio judicial envolvendo a elegibilidade de Garotinho está se resolvendo, mas, sabendo-se ou não se ele será candidato, fato é que o ex-governador fluminense aparece muito bem colocado na pesquisa de intenção de voto. Só perde o segundo lugar para o prefeito de São Paulo, o tucano José Serra. Mesmo assim, fica na terceira posição, com seis pontos a menos. Surpreendentemente, em outros dois cenários propostos, Garotinho fica na segunda colocação, à frente dos governadores tucanos de Minas Gerais, Aécio Neves, e de São Paulo, Geraldo Alckmin, que chegam em terceiro. Este último é o que apresenta a melhor capacidade para enfrentar Garotinho – 13,6% contra 11,1%.
As estratégias do Planalto para costurar o cenário ideal de 2006, além de contar com a ascensão de personagens como Garotinho e Alckmin, ainda terão de enfrentar outro desafio: melhorar a imagem do próprio governo. Segundo a pesquisa, as ações comandadas pelo presidente Lula e sua turma não estão agradando. Para 45,2% dos entrevistados, a política econômica, tão defendida pelo presidente, tem sido conduzida de forma inadequada. A rejeição também está alta no caso da área social, a principal bandeira da campanha petista em 2002: 42,8% acreditam que ela não está no rumo certo.