"Tenho grande atenção para as mazelas nacionais, e a realidade social entra muito em consideração nas minhas decisões"
Joaquim Barbosa, ministro do STF

Em junho de 2003, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva nomeou o jurista Joaquim Benedito Barbosa Gomes, seu eleitor, ministro do Supremo Tribunal Federal. Quatro anos e três meses depois, em setembro último, o ministro colocou no banco dos réus os 40 mensaleiros, entre eles políticos que freqüentavam com assiduidade o gabinete de Lula e que agora respondem a processo criminal por terem montado um esquema de arrecadação ilegal de recursos com o propósito de comprar apoio político ao governo. Com seu relatório implacável, o ministro protagonizou uma das etapas mais significativas da consolidação da democracia no Brasil. Ao aplicar o rigor da lei contra os amigos do presidente, Joaquim Barbosa colocou em prática a teoria de que a lei é igual para todos, reafirmou a independência do Judiciário e assegurou a harmonia entre os poderes, condições essenciais a qualquer regime democrático.

A decisão no caso do Mensalão não foi o primeiro gesto de independência do ministro. Certa vez o Palácio do Planalto o convidou para uma viagem à África na mesma comitiva do presidente Lula. Barbosa já conhecia alguns países do continente e rejeitou o convite. Respondeu que gostaria muito de representar seu país, mas que a viagem era de autoridades do Executivo e não queria passar a idéia de viajar a reboque da comitiva de Lula. “Meu único objetivo é a busca pela Justiça”, diz o ministro. “Este é um país injusto e a decisão tomada pelo STF sinaliza para mudanças.”

Aos 53 anos, Joaquim Barbosa se empenha para tornar o Poder Judiciário mais eficiente. Para tanto, aponta três alvos a atacar: a desigualdade, o patrimonialismo e o corporativismo. “Tenho grande atenção para as mazelas nacionais e a realidade social entra muito em consideração nas minhas decisões”, diz Barbosa. Antes de virar ministro, ele foi procurador da República, mas não teve sucesso ao tentar difundir suas teses. “Eu era procurador regional, que é a fossilização do cargo de procurador”, ironiza. Agora no STF, Barbosa tem encontrado o espaço suficiente para difundir uma nova linguagem jurídica, a linguagem da simplicidade, segundo ele resultado de alguns anos trabalhando como revisor de jornais em Brasília e de publicações na gráfica do Senado, quando jovem. Foi com esta linguagem que ele convenceu seus pares a enquadrar criminalmente os artífices do Mensalão. “O Judiciário não sabe se comunicar. A linguagem barroca e rebuscada é o fator de distanciamento do Judiciário do povo”, critica Barbosa. “O povo está distante do Judiciário por falha do Judiciário.”

REUTERS/JAMIL BITTAR

Na posse Eleitor de Lula, o ministro disse ao presidente que atuaria com independência e assim tem conduzido suas ações no STF

Barbosa parece não se encaixar em nenhum dos estereótipos atribuídos a ele. O ministro já cansou de ouvir que é o primeiro negro pobre do STF. “Isso é clichê!”, responde. Ele diz que não tem nada a reclamar: “A casa onde nasci era casa de pobre, morava no mesmo ambiente dos meus avós, mas nunca passei muitas dificuldades”, recorda o ministro, que sempre estudou em escolas públicas. No outro extremo, Barbosa vira e mexe é apresentado como o intelectual refinado que só escuta música clássica. “Gosto muito dos quatro monstros sagrados: Bach, Mozart, Beethoven e Brahms, mas eu vi os últimos três shows do Rolling Stones, em Paris, Viena e Rio.”

Além do português, o ministro fala e escreve bem em francês, inglês e alemão. Fala um pouco de italiano. “Minhas línguas de trabalho são o francês e o inglês”, diz. Na França, escreveu um livro não traduzido para o português, La Cour Suprême dans le système politique brésilien. O ministro é doutor e mestre em direito público pela Sorbonne, em Paris, cursos concluídos em 1992. Nos Estados Unidos, Barbosa ensinou direito aos americanos na Columbia University, em Nova York, e na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Lá, ele escreveu em inglês o livro já traduzido para o português “Ação afirmativa e princípio constitucional da igualdade – o direito como instrumento de transformação social – a experiência dos EUA”, sobre o sistema de cotas. Mas que ninguém venha pedir ao ministro que defenda as cotas raciais no Brasil. Ele não quer falar do assunto, pois vai julgar o tema em breve.

ROBERTO CASTRO/AG. ISTOÉ

No tribunal o ministro Joaquim Barbosa monta a sua trincheira para combater a desigualdade, o patrimonialismo e o corporativismo

Barbosa deixou a pequena Paracatu, em Minas Gerais, aos 16 anos para fazer o segundo grau no Colégio Elefante Branco, em Brasília, e direito na Universidade de Brasília. Assim, inspirou a família de oito irmãos e hoje alguns recuperam o tempo perdido na escola. A vasta cultura do ministro tem uma raiz: leitura, leitura, leitura. “Eu trabalhava de dia e lia até de madrugada”, diz. “Eu passava a semana inteira na UnB. As festas boas também eram na UnB.” A maior prova de que tinha vida boa, diz o ministro, foi a compra de um carro aos 18 anos. “Comecei a ganhar muito bem ainda jovem”, diz. “Comprei um fusquinha com três anos de uso, numa época em que pouca gente da minha idade tinha carro.” Ele passeou pela literatura clássica russa aos 18 anos e leu tudo que conseguiu, de Dostoiévski, Gorki e Tólstoi. Vieram os escritores franceses, os ingleses, os americanos. Sempre intercalando com literatura lusa e brasileira. “Gosto muito do Eça de Queiroz, do Lima Barreto e do Machado de Assis”, diz Barbosa. “Mas o Lima Barreto é mais meu estilo”. Filho de um mulato nascido escravo, Lima é autor do clássico Triste fim de Policarpo Quaresma, romance que debate o nacionalismo, com críticas ao então marechal-presidente Floriano Peixoto.

O ministro não gosta de falar sobre sua vida pessoal. Ele casou-se em 1980 com Marileuza e se separou dela sete anos depois. O fruto do casamento chama-se Felipe, jornalista de 27 anos. Barbosa não quer nem falar sobre a atual namorada, para não causar um rebuliço na vida da moça. Fã de cinema, ele divide seu tempo entre o Rio e Brasília, onde tem residências. No apartamento da capital, o destaque é para a biblioteca e a coleção de CDs de música.