01/06/2005 - 10:00
Como se o algodão-doce despencasse das mãos e se sujasse no chão de serragem dos circos do País, o riso ficou triste na manhã de segunda-feira 23. Aos 99 anos, o palhaço Arrelia faleceu no Rio de Janeiro em decorrência de uma pneumonia. Waldemar Seyssel deixou esposa, quatro filhos, dez netos, oito bisnetos, um tataraneto e uma legião de fãs de quatro diferentes gerações. Seu reinado começou com um tropeço. Arrelia estudava direito no Largo São Francisco enquanto o circo da família excursionava pelo interior do Estado. Queria viver entre fóruns e tribunais. Um dia, durante as férias, os irmãos o vestiram, maquiaram e o empurraram para o palco. Waldemar esborrachou-se no chão e o público veio abaixo na mais gostosa gargalhada da temporada. Naquela noite, enquanto fazia caretas e perseguia os irmãos pela platéia, Arrelia selava seu futuro. Logo na estréia, lançou moda: “Hoje, tropeçar faz parte da apresentação de qualquer palhaço. Poucos sabem que isso começou com Arrelia”, diz o palhaço baiano Márcio Garcez, 40 anos, da Academia Brasileira de Circo, de São Paulo.
Lembrar as histórias de Arrelia é dar um salto na fantasia e aterrissar na realidade. Seu avô era francês, de família nobre, e se apaixonou por uma equilibrista que fazia números sobre cavalos. Seu pai mudou-se para o Brasil e fez história como o palhaço Pinga Pulha. Mas só Arrelia virou ídolo de toda uma nação. “Minha irmã e eu assistíamos a seus shows diariamente e até incorporamos alguns gestos. A gente tem mania de pôr a mão na cintura e bater o pé, como ele fazia em cena”, conta a sobrinha Dayse Seyssel. Para a pesquisadora Alice Viveiros de Castro, prestes a lançar o livro O elogio da bobagem: palhaços no Brasil e no mundo, o maior legado de Arrelia é o jeito cômico de pronunciar as palavras. “Isso surgiu por acaso. Ele estava em Piracicaba, na rua, quando passou um avião. Era a década de 30 e uma senhora começou a gritar de emoção: ‘Queriudo, vem ver o aeurouplauno! Noussa senhoura, pareuce um urulbulzão!’”, conta Alice.
Chacrinha – Ao entrar pela primeira vez em um estúdio de televisão com
sua bengala – que, invariavelmente desgovernada, atingia a própria nuca, os
pés e o bumbum –, Arrelia ampliou o público de circo e levou o picadeiro
para a modernidade. Em 1951, poucos meses depois de Carequinha lançar o
Circo Bombril na TV Tupi do Rio de Janeiro, nascia em São Paulo o Circo do Arrelia (TV Paulista). “Naquela época, os programas eram transmitidos ao vivo e não chegavam aos outros Estados. O Carequinha foi o primeiro palhaço na tevê para os cariocas e o Arrelia, o primeiro para os paulistas”, conta Hugo Possolo, do grupo Parlapatões, Patifes e Paspalhões. Mais tarde, Arrelia iria para a TV Record – onde fez dupla com seu sobrinho Pimentinha – e Carequinha passaria pela TV Rio e TV Manchete. “A estrutura anárquica desses programas serviu de base para o Chacrinha. Arrelia inventou um modelo de atração para criança que durou até o império das loiras, nos anos 80. E criou um bordão que até hoje faz sucesso”, diz Possolo. Ele se refere ao famoso “como vai, como vai, como vai?”. Hoje, no momento em que o circo busca novos caminhos para vencer a crise, a arte de Arrelia serve de inspiração para os novos palhaços. O maior espetáculo da terra não pode parar. Muito bem, muito bem, bem, bem.