01/06/2005 - 10:00
O espectro da luta de classes, esse velho fantasma que muitos consideravam extinto, volta a assombrar perigosamente a desgraçada Bolívia, o país mais pobre da América do Sul. Na semana passada, milhares de indígenas que sitiavam a capital, Laz Paz, ocuparam praças, entraram em choque com a polícia e isolaram a cidade do resto do país através do bloqueio da estrada da vizinha El Alto. O movimento, convocado por sindicatos e grupos indígenas, exige a nacionalização sem indenização do setor de hidrocarbonetos – gás e petróleo – e a convocação de uma Assembléia Constituinte. Nem a lei de hidrocarbonetos aprovada na semana passada pelo Congresso, à revelia do Executivo, que aumentou em 32% o imposto sobre a produção de gás e petróleo, conteve o ânimo das massas. Ao mesmo tempo, organizações empresariais da província de Santa Cruz de la Sierra, a mais rica do país – 50% do PIB, 60% dos poços de petróleo e 90% da indústria –, se reuniram a representantes das províncias de Pando, Tarija e Beni e marcaram para 12 de agosto um plebiscito sobre a autonomia das regiões.
A fratura da Bolívia pode ser expressa em suas duas facetas: na versão das elites, pela boca de Gabriela Oviedo, miss Bolívia deste ano, que disse: “Quem não conhece a Bolívia acha que somos todos índios. Aqui (no leste) somos todos altos e brancos e sabemos falar inglês.” O outro lado da moeda veio pela boca de Jaime Solares, líder da Central Operária Boliviana (COB), para quem: “Se houvesse um coronel ou um general como Hugo Chávez, não seria nenhum crime.” Este perigoso apelo ao “pronunciamento”, parece, já está tendo ressonância nos quartéis. Na quarta-feira 25, um grupo de coronéis exigiu na tevê a renúncia do presidente Carlos Mesa. “O povo está pedindo aos gritos, com a voz na garganta, para que nós, oficiais jovens, nos encarreguemos do governo deste país”, disse o tenente-coronel Julio Herrera. “Aproveitando o suborno que dão aos políticos, as multinacionais querem desmembrar nossa pátria”, acusou. A cúpula das Forças Armadas desautorizou os oficiais, mas manifestou firme oposição a qualquer tentativa de dividir o país.
No meio da confusão, o Congresso escolheu para regulamentar a lei dos hidrocarbonetos exatamente gente ligada às empresas petrolíferas. Parece ter sido a gota d’água para o líder dos cocaleros, Evo Morales. Ele agora diz que apenas a convocação de uma Assembléia Constituinte poderá dar um jeito no país.
Brasil e Argentina – A crise do país vizinho levou o Brasil e a Argentina a superar rusgas pontuais e a enviar emissários à Bolívia. O Palácio do Planalto despachou
o assessor presidencial Marco Aurélio Garcia para conversações com o governo
e a oposição bolivianos. Para o Itamaraty, a maior preocupação sobre a Bolívia
é que a crise agora parece estar disseminada em todos os setores da sociedade. Diplomatas destacam que não se trata mais de apenas uma polêmica lei que aumentou impostos e royalties sobre gás e petróleo, que afeta diretamente a Petrobras. “Do gás e do petróleo, os setores mais radicais passaram a
falar em expropriação pura e simples de todo o setor petrolífero. Ao mesmo
tempo, movimentos secessionistas, originados na próspera região de Santa
Cruz de la Sierra, ameaçam a integridade do país”, comenta, preocupada,
uma fonte diplomática.
Como se não bastassem todas as divergências internas que afloraram depois da lei dos hidrocarbonetos, o Congresso ainda reavivou uma velha ferida nacional, a perda da saída para o mar para o Chile, no século XIX. O plebiscito que antecedeu a votação da lei do gás e do petróleo determinou que essas riquezas seriam usadas como moeda de troca com relação à saída para o mar. Pela lei, a Bolívia só poderá vender novamente gás para o Chile – de quem já é grande fornecedor – se o país andino devolver o território e, em conseqüência, o mar bolivianos, tomados na guerra do Pacífico (1879-1884). O problema todo é que, para o Chile, essa terra é intocável. Esse diálogo de surdos só contribui para piorar a crise.