Americanos e brasileiros vivem momentos distintos no complexo campo da terapia celular, aquela que recorre às famosas células-tronco (capazes de se transformar em qualquer tecido) para recuperar as funções deterioradas do organismo. Enquanto na semana passada os deputados do Congresso dos Estados Unidos aprovavam um projeto de lei que libera recursos para estudos com as células retiradas de embriões descartados em clínicas de fertilização – proposta que ainda aguarda confirmação do Senado e que o presidente George W. Bush anunciou que vai vetar –, nossos pesquisadores se preparavam para dar um largo passo na história nacional da medicina. No início de junho, provavelmente na quinta-feira 2, será iniciado o Estudo Multicêntrico de Terapia Celular em Cardiologia, trabalho que envolverá 50 instituições, cerca de 350 especialistas, 1,2 mil portadores de quatro graves problemas do coração e um financiamento de R$ 13 milhões do governo. De acordo com o Ministério da Saúde, é a maior investigação científica do gênero feita no mundo.

O Estudo Multicêntrico está dividido nas áreas de cardiomiopatia dilatada, doença de Chagas, infarto e doença isquêmica crônica e pretende avaliar a eficácia da terapia, algo que é sugerido pelos trabalhos já realizados. “O objetivo é mostrar que o tratamento tem resultado relevante nas enfermidades cardiológicas”, reforça o médico Bernardo Rangel Tura, do Instituto Nacional de Cardiologia de Laranjeiras, no Rio de Janeiro. O hospital é o centro coordenador da megapesquisa. Para cumprir esse papel, o estudo precisa seguir um procedimento referendado pela comunidade científica. Isso quer dizer que os pacientes receberão terapia-padrão, mas que apenas metade terá a aplicação das células-tronco. Nem os voluntários nem os médicos saberão quem será beneficiado. Os doentes serão acompanhados e os dados comparados para que se chegue a um parecer. Em três anos, o trabalho deverá estar concluído.

Uma investigação desse porte é importante porque, além de validar os efeitos do tratamento, mostra que não se faz milagre com as células-tronco. “As pessoas querem ser cobaias para tratar qualquer coisa. Não é assim. O que tem sido feito, por enquanto, são só estudos”, afirma Mayana Zatz, professora de genética humana da USP. Há procura, de fato, por meios de combater até mesmo dor nas costas. “As demandas estão cada vez maiores. Mas a realidade é que ainda há muito para ser comprovado”, completa o pesquisador Ricardo Ribeiro dos Santos, da Fiocruz/Bahia. Na cardiologia, o que se busca no momento é exatamente essa comprovação. Para outros usos, caso da adoção dessas estruturas contra lesões medulares, diabete e derrame cerebral, por exemplo, também são necessárias evidências de que a técnica dará certo. Em razão disso, o Ministério lançou edital em abril para que os centros de pesquisa apresentem suas propostas, inclusive para as
células embrionárias. As inscrições terminam em agosto. Recomenda-se a
quem queira participar de estudos que confira se o projeto foi aprovado por um comitê de ética (a lista está em www. saude.gov.br/sisnep). “As experiências
têm de seguir um processo científico e ser feitas por equipes com trabalho reconhecido na área”, ressalta Suzanne Serruya, diretora do Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério.

Reconhecimento não falta ao Instituto
do Coração (InCor), de São Paulo,
centro que coordenará a parte do
estudo dedicada à doença isquêmica crônica. No décimo andar do bloco II
da instituição funciona o Laboratório
de Genética e Cardiologia Molecular, uma de suas unidades de pesquisa. São 50 pessoas envolvidas diretamente com as investigações produzidas numa área de 1,2 mil metros quadrados. Mas essa é apenas uma ponta. O InCor inteiro se integra aos trabalhos, do corpo clínico aos especialistas em imagem. “Dispomos de condições únicas para fazer pesquisa. Não é em muitos lugares no mundo que se encontra um serviço cardiovascular com 500 leitos e 16 salas cirúrgicas”, observa José Eduardo Krieger, um dos diretores do laboratório.

Injeções – Por conta disso, é possível aplicar células-tronco num paciente no período de quatro horas entre a coleta do material da medula óssea (via punção na região do quadril) e a separação das peças curingas. No caso, o procedimento consiste em retirar 100 ml de material medular do paciente (antes de ele ser operado para implante de ponte de safena ou mamária, a terapia-padrão). O conteúdo é transportado numa cuba estéril para o laboratório. Lá, sob a proteção de um equipamento que filtra e esteriliza o ar, é colocado num tubo com uma substância que facilita a distribuição dos elementos presentes no material conforme o tamanho e a densidade. Em seguida, o tubo passa por uma centrifugação, que separa a parte onde estão as células-tronco. “Os 100 ml viram cinco seringas de 1 ml. Numa terapia como essa, em geral são utilizadas de 20 a 25 injeções aplicadas no coração”, explica o médico Luís Henrique Gowdak, coordenador clínico da pesquisa.

Há outros métodos para aplicação das células-tronco. No grupo de infarto, por exemplo, as estruturas serão levadas ao coração por meio de um cateter, já que o problema não é tratado por cirurgia. Esse tratamento será oferecido pelo Instituto de Moléstias Cardiovasculares (IMC) de São José do Rio Preto (SP). O hospital vem realizando pesquisas bem-sucedidas e agora, para atender os novos pacientes, ampliou as instalações onde serão feitos os exames preliminares dos inscritos. “Faremos uma avaliação minuciosa porque existem critérios para a escolha do paciente. O principal é não estar respondendo às terapias disponíveis”, diz Milton Ruiz, coordenador do estudo no IMC. Cerca de 600 pessoas já se cadastraram, entre elas o vendedor W.S., 30 anos, portador de cardiomiopatia dilatada. A patologia foi diagnosticada no final de 2004 e desde então ele não pôde mais trabalhar. “Minha esperança é voltar a ter uma vida normal. Tem dado certo para tanta gente. Comigo não será diferente”, acredita.