01/06/2005 - 10:00
Ele abriu minha cabeça, meu supercílio, quebrou meu braço. Fui na delegacia oito vezes. Ele dizia: ‘Pode ir, eu pago uma cesta básica e posso continuar batendo.’ E foi exatamente o que aconteceu.” O depoimento de Luciana*, 35 anos, gerente de uma loja de móveis no bairro nobre do Leblon, no Rio de Janeiro, é a síntese do que ocorre com quase sete milhões de brasileiras. Depois de três meses apanhando do ex-marido, Luciana ainda não conseguiu se livrar de seu algoz. Mesmo obrigado a se manter longe dela, volta e meia dá incertas em sua casa. “Chega lá dizendo que foi pegar umas coisas. Eu fico morrendo de medo.” Isso acontece porque a legislação brasileira não protege suficientemente as vítimas de violência doméstica. A pena mais aplicada nesses casos é o pagamento de cestas básicas, prevista na Lei nº 9.099, de 1995, segundo a qual a agressão contra a mulher é um “crime de menor potencial ofensivo”. De sua aprovação até hoje, a cesta tem sido praticamente a única forma de se “punir” o agressor. Isso sem falar no chamado “processo conciliatório”, também previsto na lei, que inclui, por exemplo, a tentativa de retirada da queixa. “Teve um conciliador que me fez renunciar a seis boletins de ocorrência. Ficou horas me pressionando. Depois disso, fui agredida de novo”, lembra Luciana.
A impunidade, ou a sensação de impunidade, só tem contribuído para o aumento de casos no Brasil, onde a cada 15 segundos uma mulher é agredida. Numa pesquisa realizada pela Sociedade Mundial de Vitimologia (IVW), ligada à ONU, aparecemos como campeões da violência doméstica num ranking de 54 países: aqui, 23% das mulheres estão sujeitas a esse tipo de agressão. O Senado, em março deste ano, realizou uma pesquisa e descobriu que 95% das mulheres brasileiras consideram “importante” ou “muito importante” a criação de uma legislação específica que as proteja. “É um acinte tratar a violência doméstica como um crime banal. Acho que o espancamento é algo hediondo, uma afronta à dignidade humana”, revolta-se a presidenta do Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo, Aparecida Maria de Almeida, a Cidinha. “Tenho medo do Judiciário. Numa cidade da Grande São Paulo, uma juíza condenou um agressor a comprar um quilo de ração de cachorro, acredita?”, revolta-se.
Banalização – A costureira Maria, 46 anos e casada há 26, apanhava do marido desde 1998, no Recife, onde mora. “Fiquei desorientada. Uma vez ele bateu minha cabeça contra a parede no corredor do prédio, e fui socorrida pelos vizinhos. Nunca vou esquecer aquilo”, conta. Apesar de todo o sofrimento, Maria só teve coragem de denunciá-lo à polícia no início deste ano. “Eu tinha vergonha, mas as vizinhas me convenceram.” Por enquanto, foi em vão. Depois de três queixas realizadas na Delegacia da Mulher, nada aconteceu. Quando o processo terminar, o agressor certamente será condenado a prestar algum tipo de serviço à comunidade. Provavelmente, na forma de cestas básicas. A delegada Márcia Salgado, coordenadora das 125 Delegacias da Mulher do Estado de São Paulo, diz que antes de 1995 os juízes consentiam em, pelo menos, quebrar a primariedade do réu. “A condenação também dificilmente era a prisão, mas ele ficava com antecedentes criminais. Hoje, nem isso”, explica.
Para acabar com a banalização da agressão, o governo propôs um novo Projeto de Lei (PL), que criminaliza a violência doméstica em seus termos mais específicos. A deputada Jandira Feghali (PCdoB/RJ), relatora do projeto, diz que a idéia é criar uma Vara especializada única e exclusivamente no tratamento desses casos, unindo as áreas Penal e Civil, e vetar a cesta básica. A delegada Márcia sugere que os agressores sejam condenados a, por exemplo, freqüentar um pronto-socorro de hospital, “para ver de perto a situação de pessoas espancadas”, diz. “Geralmente, esse homem não é um risco para a sociedade, ele é um deseducado para viver com uma mulher. A grande maioria é formada por cidadãos de bem, chega a ser temerário botar esse camarada na cadeia”, observa a delegada, baseada em sua experiência de 13 anos à frente de uma Delegacia da Mulher. Mas, para ela, o mais importante é criar campanhas de informação para esclarecer a mulher sobre seus direitos e incentivá-la a denunciar a violência. “Este é um crime que está ligado à formação das pessoas e sua diminuição depende da consciência da mulher. É difícil entrar na delegacia e dizer que há 20 anos apanha do marido. Ela não aceita a situação, mas também não se vê fora dela”, afirma. O projeto de lei também contempla a criação de campanhas de esclarecimento.
Esse talvez seja mesmo o X da questão quando se trata de prevenção. Uma Pesquisa do Ibope/Instituto Patrícia Galvão revelou que ainda é significativo o
índice de brasileiros que concordam com afirmações como “tapa de amor não dói”(16%), “a mulher deve agüentar a violência para manter a família unida” (11%), “ruim com ele, pior sem ele” (17%) e “não se deve interferir numa briga violenta entre marido e mulher” (40%). Para 66% dos entrevistados, vale o ditado “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. É tarefa muito difícil derrubar conceitos como esses, já tão arraigados. Mas Cidinha, do Conselho da Condição Feminina, conclui: “Tem que se meter, sim. Não é invasão de privacidade, é uma questão
de saúde pública.”
* Os nomes das vítimas são fictícios