Walfrido dos Mares Guia
Brasília, 22 de novembro de 2007

Na ensolarada manhã da quinta-feira 22, no Palácio do Planalto, o ministro das Relações Institucionais, Walfrido dos Mares Guia, dava os últimos retoques para a festa de aniversário de seus 65 anos, que organizava para levar meia República a homenageá-lo em sua mansão colonial em Santo Antônio do Leite, Minas Gerais. Ali perto, o PSDB iniciava outra festa, o 3º Congresso Nacional, para escolher a nova direção do partido. Às 13 horas, porém, uma notícia atravessou a Esplanada dos Ministérios e estragou as duas festas. Dois meses depois de ISTOÉ publicar os documentos que elucidavam o chamado Mensalão Mineiro – o esquema de arrecadação ilegal para a campanha de reeleição do então governador Eduardo Azeredo –, o procurador- geral da República, Antonio Fernando de Souza, entregou ao ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal, sua denúncia. Como afirmara ISTOÉ e contra todos os desmentidos e negativas do ministro e do PSDB, o procurador demonstrou que a dupla Mares Guia-Azeredo estava no comando do esquema.

Mares Guia anunciou o cancelamento de sua festa de aniversário e deixou o governo pela porta dos fundos do Palácio do PlROBERTO CASTRO/AG. ISTOÉanalto. No início da noite, passou o cargo ao deputado José Múcio Monteiro (PTB-PE), sem a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, numa transmissão de cargo reveladora do pouco poder do novo ministro. “A acusação é injusta e improcedente”, defendeu-se Mares Guia, antes de ir embora. No encontro dos tucanos, os principais cardeais do partido precisaram dividir os discursos políticos com explicações jurídicas. “As questões financeiras envolvendo a campanha eleitoral de 1998 não foram de minha responsabilidade”, disse o senador Eduardo Azeredo em nota. “Quem tiver culpa no cartório, que pague pela culpa”, cutucou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

Os documentos revelados em setembro por ISTOÉ são os mesmos que serviram de base para a denúncia do procurador, um arrazoado de 89 páginas, onde são dissecadas as participações de 15 estrelas da política mineira, incluindo o empresário Marcos Valério. Segundo Antonio Fernando de Souza, a rede de arrecadação ilegal, com uso de caixa 2 e lavagem de dinheiro, montada pelos tucanos, foi o laboratório do futuro mensalão do PT. “O esquema delituoso verificado no ano de 1998 foi a origem e o laboratório dos fatos descritos na denúncia já oferecida no inquérito número 2245”, escreveu o procurador, referindo-se ao inquérito que investigou o chamado Mensalão Federal e colocou no banco dos réus a antiga cúpula do PT.

A campanha de Azeredo, segundo a denúncia, movimentou mais de R$ 100 milhões e a investigação comprovou que pelo menos R$ 3,5 milhões foram desviados de empresas estatais. Mares Guia é citado 50 vezes na denúncia. Ele é acusado sete vezes pela prática do crime de peculato e seis vezes por lavagem de dinheiro. Na matemática do Código Penal, caso venha a ser condenado pela totalidade dos crimes no STF, o ex-ministro poderá amargar até 172 anos de prisão. “O ministro é co-autor porque participou dos atos que engendraram este esquema”, escreve Antonio Fernando. O senador Azeredo é acusado dos mesmos crimes de Mares Guia. Marcos Valério é denunciado por 13 crimes, que poderão lhe render 212 anos de cadeia. O grupo só não responderá por formação de quadrilha, como ocorreu com os petistas liderados por José Dirceu, porque, no caso de Minas, esse crime prescreveu em 2006.

Desde que ISTOÉ denunciou o Mensalão Mineiro, Mares Guia vinha insistindo na tese de que não teve nenhuma participação decisiva na campanha de Minas em 1998. O que o procurador concluiu, após analisar os documentos, desmente- o peremptoriamente. Segundo a denúncia, coube a Azeredo, Clésio Andrade (ex-vice-governador de Minas), Mares Guia e Cláudio Mourão (tesoureiro da campanha) implantar o esquema que desviou recursos públicos e lavou dinheiro para utilizá-lo na campanha eleitoral. “Tinha (Mares Guia) pleno conhecimento da engrenagem criminosa de financiamento da campanha”, escreve Antonio Fernando. Mais adiante, o procurador complementa: “Walfrido dos Mares Guia também era um dos responsáveis por indicar as pessoas que receberiam os recursos da campanha, fruto dos crimes descritos.” Em 26 de setembro, ISTOÉ publicou uma série de documentos indicando que Mares Guia geria os recursos de campanha, inclusive um manuscrito no qual o ex-ministro relaciona valores e identifica a quem deveriam ser distribuídos. Mares Guia chegou a negar a autoria do documento, o que foi desmentido por laudo pericial do Instituto Nacional de Criminalística. “Foram praticados diversos crimes”, diz o procurador. “Todos os denunciados tinham ciência e concorreram, cada um de uma forma particular, para o criminoso financiamento da campanha eleitoral.”

SUCESSÃO
Mares Guia cancela festa de aniversário e dá o lugar a José Múcio, que toma posse sem a presença de Lula

Em sua denúncia, Antonio Fernando detalha que chegou a ser montada uma “operação abafa” para evitar que o esquema articulado em 1998 viesse a público em 2002, quando Azeredo estava às vésperas de ser eleito senador. Na ocasião, o ex-tesoureiro Cláudio Mourão dizia ser credor de R$ 1,5 milhão da campanha de 1998 e ameaçava denunciar todo o esquema caso não fosse quitada a dívida. Como estava rompido com Mourão e dizia não ter dinheiro, Azeredo escalou Mares Guia para resolver o problema. Mares Guia, então, recorreu a Marcos Valério, que emprestou R$ 700 mil a Azeredo. Com esse dinheiro, Mourão manteve-se em silêncio. Mas a operação conduzida por Mares Guia acabou deixando rastros. ISTOÉ publicou cópia do cheque e, no mês passado, mostrou um documento indicando que a Samos Participações, empresa de Mares Guia, foi utilizada para pagar a dívida de Azeredo com Marcos Valério. A Receita Federal começou uma devassa na empresa do exministro e apontou que a Samos apresentara uma movimentação financeira 22 vezes maior do que fora declarado. “Walfrido dos Mares Guia sabia da captação ilícita de recursos e concorreu para a engrenagem ilícita de financiamento, razão pela qual não hesitou em participar da operação destinada a atender à exigência de Cláudio Mourão, que cobrava de Eduardo Azeredo o pagamento da dívida. Atender à demanda de Cláudio Mourão significava impedir qualquer tipo de publicidade para os crimes perpetrados em 1998”, afirma o procurador. “A operação abafa é reveladora, pois reúne alguns dos principais personagens do esquema da campanha eleitoral de 1998: Azeredo, Mares Guia, Valério e o Banco Rural.”

1- 19 de setembro ISTOÉ revela os documentos que comprovam a existência do Mensalão Mineiro

2 – 3 de outubro ISTOÉ mostra as irregularidades encontradas pela Receita nas empresas do ministro

3 – 26 de setembro Perícias da Polícia Federal desmontam as versões apresentadas por Mares Guia

4 – 10 de outubro Mares Guia diz que as acusações não procedem, mas não convence

Sempre um pouco atrasado em relação à realidade, Mares Guia soube que seria denunciado há cerca de dez dias. Na terça-feira 20, ele avisou a Lula que iria deixar o governo assim que a denúncia se tornasse pública. O presidente aceitou na hora o pedido de demissão. Mas, ainda assim, o ex-ministro esperava festejar o aniversário no antigo cargo. Não deu tempo. O procurador- geral seguiu seu próprio calendário. Na tarde da quinta-feira 22, na despedida, o chefe-de-gabinete de Lula, Gilberto Carvalho, chorou copiosamente.

MANDATO AMEAÇADO Encrencado na Justiça, Azeredo corre o risco de ser cassado

O impacto da denúncia do procurador vai reverberar a partir de agora na política mineira. A acusação de Antonio Fernando de Souza atinge apenas os que captaram e distribuíram os recursos. Os beneficiários ainda estão sendo investigados e documentos foram encaminhados ao Ministério Público de Minas e à Procuradoria da República no Estado. Entre os documentos está uma lista já divulgada por ISTOÉ. Trata-se da relação com os nomes de 159 políticos de 17 partidos diferentes elaborada por Cláudio Mourão. O documento registra, ao lado de cada um dos nomes, a quantia que teria sido destinada pelos dutos do Mensalão Mineiro. A PF já constatou a autenticidade da assinatura do ex-tesoureiro Mourão e chegou a recolher recibos de muitos dos beneficiados pelo caixa 2 de Mares Guia e Azeredo. Como no caso do Mensalão do PT, o estrago capaz de comprometer o futuro político dos mentores do esquema já está feito. O risco para quem ainda não viu seu nome envolvido, contudo, começa a partir de agora, quando os denunciados precisam apresentar na Justiça explicações que possam livrá-los de passar os próximos anos numa prisão. É no desespero que os antigos aliados viram inimigos.

ANTES TARDE DO QUE NUNCA
Quando, em setembro de 2007, ISTOÉ publicou os documentos do Mensalão Mineiro, o bravo PSOL da combativa ex-senadora Heloísa Helena perdeu-se em infindáveis reuniões sobre o que fazer quanto ao envolvimento do senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) e à possibilidade de um pedido de cassação do seu mandato. O partido dissidente do PT, quase instantâneo em transformar em ações toda e qualquer denúncia, discutiu por semanas em cima do sofisma segundo o qual fatos anteriores ao mandato não configurariam quebra de decoro parlamentar. Um argumento que não valeu, por exemplo, para os casos envolvendo o ex-presidente da Casa Jader Barbalho (PMDB-AP) e o senador Luiz Estevão (PMDB-DF). A única voz dissonante foi a do deputado Chico Alencar (PSOL-RJ), que insistia que mentir – o senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) disse, em discurso em plenário, que “nada sabia” sobre a existência do valerioduto mineiro – também é ferir o decoro.

Depois de muita pressão diante da hipótese de que poderia estar usando pesos e medidas diferentes, o PSOL finalmente encaminhou uma ação. Mas o fez de forma protocolar, com Heloísa Helena já dizendo de antemão que provavelmente não daria em nada.

O processo foi arquivado por unanimidade pela Mesa Diretora da Casa e ninguém opôs nenhuma resistência. Agora, premido pelos fatos, depois da denúncia do procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, o PSol ensaia bater bumbo em favor da investigação. “Vamos avaliar a possibilidade de desarquivar ou até entrar com novo pedido”, disse o líder do partido na Câmara, deputado Chico Alencar (RJ). Na mesma linha trilha o deputado Fernando Gabeira (PV-RJ). Em setembro, ele disse que era preciso esperar a posição do procurador. Agora, quer punir: “Os fatos são graves e devem ser representados.”

O ex-deputado do PT mineiro Rogério Corrêa, autor da primeira denúncia contra o senador tucano, prometeu protocolar, nos próximos dias, um pedido de cassação por quebra de decoro contra Azeredo. “O procurador da República reconheceu na denúncia que houve um cala-boca de Mourão (o tesoureiro da campanha, Cláudio Mourão) poucos dias antes da eleição de Azeredo como senador, bem depois de ele ter deixado de ser governador. É com base nisso que vou requerer a cassação”, disse o petista.

SÉRGIO PARDELLAS