18/05/2005 - 10:00
O chavão atestando que a História é escrita pelos vencedores perdeu, há muito tempo, originalidade e veracidade. A História, desde a invenção do cinema, é escrita por Hollywood. Na segunda-feira 9, quando se celebrou os 60 anos do fim da Segunda Guerra Mundial na Europa, a presença de George W. Bush na Rússia – o primeiro presidente americano a participar das comemorações da vitória na Praça Vermelha, em Moscou – foi um reconhecimento tardio, pelos EUA, do papel decisivo da União Soviética na derrota do nazismo. Mas na memória da grande maioria das pessoas, que conhecem os fatos da Segunda Guerra principalmente através dos épicos do cinema, foram os valentes rapazes americanos – secundados por britânicos e franceses – os principais responsáveis pela derrocada do III Reich. A produção mais recente de Hollywood do maior embate militar da humanidade é Saving private Ryan (O resgate do soldado Ryan, de 1998), obra do diretor Steven Spielberg. Um enredo que, apesar de realista, tem pouco a dizer sobre a violência elevada a patamares inimagináveis e mortes contadas aos milhões, como ocorreu em Volgogrado – cidade à beira do rio Volga, na Rússia, que ganhou esse nome em 1961. Antes da revisão, ela era Stalingrado. Pois foi ali, nas estepes russas, que Adolf Hitler e seus exércitos começaram a perder a guerra.
Uma guerra é o conjunto de batalhas, lutas, atritos e escaramuças entre forças rivais. Vence quem conseguir bater o inimigo mais vezes nos confrontos de maior importância. Por volta de 1941, as tropas do Eixo (Alemanha-Itália-Japão), capitaneadas pelo III Reich, estavam fazendo exatamente isso. Haviam surrado seus oponentes de modo sistemático. Até o dia 22 de junho daquele ano, quando três milhões de soldados da Wehrmacht (Exército alemão) entraram em território soviético, na Operação Barbarossa, os alemães haviam conquistado a maior parte da Europa continental sem sofrer derrotas. Confiava-se que a eficiência da blitzkrieg (estratégia de engajamento rápida contra alvos específicos com ações coordenadas de bombardeios e maciças formações de tanques) fosse dobrar a União Soviética até o outono (outubro e novembro) de 1941. Desse modo, em três meses os alemães estavam às portas de Moscou. Os generais nazistas esperavam que a população soviética, oprimida pela feroz ditadura de Josef Stálin, recebesse a Wehrmacht como “libertadora” – auto-engano semelhante ao cometido pelos americanos na invasão do Iraque em 2003.
Surpresa – “Ao lado dos três milhões de soldados alemães, havia também mais de um milhão de italianos, finlandeses e romenos. E a estes se juntaram, de fato, outro milhão de ucranianos, russos, tártaros, cossacos e várias etnias que formavam a União Soviética”, diz o historiador e professor Richard Overy, do King’s College de Londres. Stálin ficou perplexo com a invasão. O ditador não acreditava que Hitler – com quem havia feito um acordo de não-agressão, o Pacto Molotov–Ribbentrop, em 1939 – fosse abrir uma nova frente de guerra, estando ainda em luta contra a Grã-Bretanha. Os comunistas do pós-guerra justificavam a inércia de Stálin, dizendo que se tratava de manobra estratégica: ceder quase toda a parte européia aos nazistas, um enorme território, para poder atacar o inimigo por trás e cortar os suprimentos da enorme força invasora.
De fato, foi mais ou menos isso que ocorreu: tempos depois, os alemães perderam o controle da retaguarda, ficando com a logística comprometida. “Tanto que, no primeiro inverno, os soldados da Waffen-SS não tinham uniformes próprios para o frio. Envergavam as fardas mais leves usadas no outono”, diz o professor Ernest Gauss, da Universidade de Berlim. Mas é, no mínimo, duvidosa a afirmação de que Stálin contava com isso: as botas nazistas estavam pisoteando os jardins de Moscou, o que torna a tática de ceder terreno um tanto dramática. No outono de 1941, a maior parte do Exército Vermelho e a quase totalidade da Força Aérea soviética haviam sido destruídas. Em Leningrado, (atual São Petersburgo) mais de um milhão de pessoas morreram de frio e fome, devido ao cerco montado em torno da cidade. Até o final do conflito, morreriam 27 milhões de soviéticos.
Nova frente – No verão de 1942, a Wehrmacht abriu outra frente de batalha. Os invasores foram para o sul do país em busca dos fabulosos campos de petróleo do Cáucaso. Outro interesse estratégico dessa investida nazista era cortar a rota de navios no rio Volga. O que aprofundaria o caos e miséria dos soviéticos. O rio seria bloqueado em Stalingrado. Depois disso, as tropas germânicas poderiam rumar novamente para o norte e flanquear Moscou. Na quinta blitzkrieg de sucesso desde a conquista da Polônia em 1939, as divisões do Panzergruppe 1, comandadas pelo general Paul Ludwig Ewald von Kleist, entraram como um aríete no corredor entre os rios Don e Donetz, a saída para o Cáucaso. Foi quando a soberba nazista começou a cavar sua própria sepultura. Em vez de concentrar as forças nas áreas já conquistadas, ou mesmo em pontos únicos que estavam sendo atacados, Hitler decidiu mandar Kleist para os campos de petróleo e depois rumo à região dos Urais, onde estava o grosso da indústria soviética. Para Stalingrado foi designado o 6º Exército do marechal-de-campo Friedrich von Paulus. Ou seja: dividiu para conquistar, mas no mau sentido.
Para enfrentar a tragédia, Stálin aumentou a autonomia de seu Estado-Maior. Ele, que entre 1936-38 havia eliminado seus melhores generais num grande expurgo, apelou em 1942 para os profissionais. Achou um jovem general brilhante, Georg Jukov, para comandar a luta. Fez mais: obrigou o Partido Comunista a dar maior flexibilidade ao Exército Vermelho na guerra e diminuiu a importância dos comissários do partido junto às Forças Armadas. Reformou-se o Exército Vermelho e ressurgiu a Força Aérea. Foram criadas divisões de tanques, baseadas nos panzers alemães, mas mais pesados e com rádios a bordo, o que permitia melhor comunicação. O modelo T-34 soviético era um tanque superior a qualquer blindado do inimigo. O trabalho forçado nas fábricas soviéticas transformava matérias-primas, inclusive as doadas por ingleses e americanos, em armamentos que aos poucos foram suplantando a máquina da Wehrmacht. Stálin havia transferido o parque industrial para os Urais, colocando-o longe do alcance dos nazistas. E esta mudança também determinou o destino da guerra.
Virada – “Alguns historiadores vêem este episódio em Stalingrado como o momento decisivo da Segunda Guerra. Eu acredito que somente no verão de 1943, em julho, depois da batalha de Kursk – um dos maiores embates militares da história –, é que foi selado o destino de Hitler. Por dois anos, até 1945, o Exército Vermelho foi empurrando os alemães de volta a seu país, até que acabaram todos em volta do bunker de Hitler”, diz o professor Overy. “A resistência soviética tornou possível o sucesso da invasão aliada na Normandia e garantiu uma vitória final contra o III Reich. O Estado soviético foi transformado, neste processo, numa superpotência. O comunismo, que estava perto da extinção no outono de 1941, passou a dominar a Eurásia, desde o leste da Alemanha até a Coréia do Norte”, diz Overy. A guerra, como se vê, nem sempre é adaptável às telas.