O presidente da Argentina, Néstor Kirchner, sente que existe uma dicotomia no governo brasileiro e não sabe para que lado olhar. Enquanto Brasil e Argentina se aliam em foros internacionais – como o G-20 (grupo de países em desenvolvimento grandes produtores agrícolas), que revolucionou as negociações na Organização Mundial do Comércio (OMC) –, os dois países se trombam em território comum, o Mercosul. Existe uma dureza da equipe econômica brasileira, que seria a responsável por atrasos no Mercosul, a qual argentinos não conseguem entender. Do lado argentino, alguns empresários também preferem que o Mercosul não avance. Mas o que os vizinhos realmente não engoliram foi a promoção do economista Murilo Portugal, considerado um inimigo pelo governo argentino, a número 2 do Ministério da Fazenda, ou seja, braço direito do ministro Antônio Palocci. Portugal era diretor do Fundo Monetário Internacional (FMI) no momento em que a Argentina negociava sua moratória da dívida externa. Nessa época, o Brasil deu as costas aos argentinos, que passavam por um momento difícil. Eles guardam essa mágoa até hoje.

A dualidade de comportamento do governo brasileiro incomoda Kirchner, um homem de temperamento difícil, nascido e criado na fria Província de Santa Cruz, na Patagônia. Os argentinos também se sentem melindrados pelo papel de liderança que o Brasil, com Lula à frente, vem perseguindo no campo internacional. A Argentina se opõe, por exemplo, à candidatura do Brasil no Conselho de Segurança da ONU. Na segunda-feira 2, o chanceler Rafael Bielsa, diretamente de Washington, durante reunião com seis embaixadores de seu país, todos com militância política (entre eles Juan Pablo Lohlé, embaixador no Brasil e um entusiasta do Mercosul), vazou para os correspondentes argentinos que Kirchner estaria “cansado das travas econômicas brasileiras, da falta de apoio à Argentina no FMI e também do ‘protagonismo’ de Lula na região”. Mais ainda: criticou a atuação de mediador do Brasil na crise do Equador. Bielsa sinalizou que a instrução do presidente era a de “endurecer as relações com o Brasil”. Fontes não identificadas chegaram a dizer que Kirchner, em conversas privadas, teria atacado o Brasil: “Se há vaga no Conselho de Segurança, eles querem; na OMC, também; a liderança continental, o mesmo. Quiseram até eleger o papa”, teria dito o presidente argentino em uma explosão de mau humor.

As declarações vindas de Washington caíram como uma bomba em Brasília. E para amenizar os destroços, promessas de alívio na balança comercial, que pende favoravelmente ao Brasil, foram feitas pelo chanceler Amorim. Nos últimos 12 meses, a parceria comercial entre Brasil e Argentina movimentou nada menos que US$ 14 bilhões: o Brasil exportou US$ 8 bilhões aos vizinhos portenhos e comprou US$ 6 bilhões. O resultado negativo para a Argentina foi o pior desde janeiro de 2002 e por lá só se fala em “invasão de produtos brasileiros”. A sugestão de Celso Amorim é o que Brasil passe a comprar mais trigo e petróleo dos vizinhos para um “equilíbrio melhor”. “A quem interessa essa disputa entre Brasil e Argentina?”, teriam interrogado fontes do Itamaraty. Tanto do lado brasileiro como do argentino, o tom elevado e agressivo da segunda-feira começou a ser abaixado. O jornal Clarín publicou artigo em que pedia que os atritos cessassem, pois a integração entre Brasil e Argentina era imprescindível tanto para o Mercosul quanto para a América Latina. O assessor do governo Lula para assuntos internacionais, Marco Aurélio Garcia, em entrevista à imprensa argentina, disse que a política externa e as relações bilaterais não eram “assunto para se decidir na Bombonera ou no Maracanã”, referindo-se aos dois templos do futebol mundial.

Mas um outro artigo do jornal Clarín trouxe luz à confusão. Eduardo van der Kooy, da direção do jornal, demonstrou que, por trás dos rompantes do chanceler Bielsa, existem brigas internas entre os políticos do país. Enquanto o chanceler vociferava em Washington, Cristina Fernandez, senadora e esposa de Néstor Kirchner, encontrava-se em Montevidéu com Marco Aurélio e o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, durante reunião de partidos de esquerda. As negociações giraram em torno de problemas econômicos, como a demora do governo brasileiro em mudar a legislação, permitindo que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) possa financiar projetos de empresas argentinas no país, a questão das assimetrias entre as economias do Mercosul e a questão, tão adiada, da Comissão do Mercosul.

Briga nos porões – Ao que tudo indica, a desenvoltura da primeira-dama irritou Bielsa. O chanceler, candidato a deputado federal por Buenos Aires e prestes a deixar o cargo em julho, busca se cacifar no Partido Justicialista – o mesmo do casal Kirchner –, com o intuito de concorrer ao governo da Província de Buenos Aires, a mais importante do país e onde está a capital federal. Coincidentemente, o cargo é pretendido também pela senadora-primeira-dama, popular, considerada no país “mais dura que o marido” e boa de voto. Por isso, a sonora bronca que Kirchner teria dado, por telefone, em Bielsa, que imediatamente baixou a bola. Fontes argentinas disseram a ISTOÉ que, se dependesse da primeira-dama, Bielsa teria voltado dos EUA desempregado.

A turma dos panos quentes tratou de garantir a presença do presidente na Cúpula América do Sul – Países Árabes, que começa na segunda-feira 9, em Brasília. E durante a visita é esperado um encontro particular entre Kirchner e Lula, que já mandou a equipe econômica acelerar as negociações técnicas do Mercosul. O presidente brasileiro irá propor novamente ao colega a realização de um jogo de futebol Mercosul X União Européia. “E o Kirchner poderá escolher o técnico”, garantiu Lula. Farpas à parte, os dois governos acertaram na sexta-feira 6 um acordo de cooperação para troca de informações sobre desaparecidos políticos durante a ditadura militar no Brasil e na Argentina. O acordo faz parte de um programa em comum para discutir direitos humanos, com temas como o tráfico de seres humanos e os direitos da infância e juventude. “Na nossa área, não existem conflitos”, disse o secretário brasileiro de Direitos Humanos, Nilmário Miranda. O enigma verde-amarelo terminou a semana exibindo sua face mais simpática. Até quando vai durar? Ninguém sabe.