Fotos: Lamberto Scipioni

NA PRAIA No final de outubro, milhares de pingüins gentoo saem do mar. É tempo de reprodução

Na Baía do Almirantado, quando se aproxima da praia de gelo e cascalho, deveria se avistar a Estação Antártica Comandante Ferraz, com seus sessenta e tantos módulos de aço galvanizado, pintados com o gritante verde-esperança da nossa bandeira. Mas, na última semana de outubro, sobre a superfície do imenso campo de neve branquíssima via-se apenas uma grande mancha alaranjada encimada por várias antenas parabólicas. Era o teto da Estação. Tudo o mais era invisível, coberto pela neve.

Fotos: Lamberto Scipioni

FRIO E CALOR Mini-cemitério contrasta com a alegria do salão social da base brasileira

“Este ano tivemos a maior quantidade de neve desde a inauguração da base, em 1984. Todas as instalações estão cobertas por uma camada de três metros de neve. Só os telhados ficaram de fora, e assim mesmo porque após cada nevasca vamos lá em cima e varremos tudo”, explica o baiano Roberto Lopes dos Santos, sargento da Marinha especializado em instalações elétricas, há nove meses na Estação. Qual a razão dessa neve toda? “Os climatologistas acham que é por causa do aquecimento global. A temperatura média na Península Antártica, onde nos encontramos, aumentou cerca de cinco graus centígrados nos últimos anos. Temperatura mais alta significa maior evaporação de água. Mais umidade na atmosfera significa maior índice de precipitações. Assim, por incrível que pareça, a causa dessa neve toda é o calor”, completa o sargento.

Pisando na neve fofa, enfiando as pernas até os joelhos, chegamos diante de um grande buraco. Uma série de degraus escavados na neve forma uma escada rudimentar que desce até a entrada. Passada a porta, encontra-se um grande salão cheio de mesas e sofás. Tem até um barzinho. É a área social da Estação Comandante Ferraz. Sobre uma mesa, bandejas cheias de bolos, biscoitos e bolachas maisena. No ar, o cheirinho de café fresco não deixa margem a dúvidas: estamos em território brasileiro.Fotos: Lamberto Scipioni

Lá dentro, todo mundo está de camiseta, os aquecedores estão todos desligados. Faz calor. Como isso é possível quando se está soterrado sob três metros de neve? É o “efeito iglu”, bem conhecido pelos esquimós que habitam o outro extremo da Terra, o Ártico. Uma casa de gelo reflete e concentra o calor.

Por sinal, os delírios do clima que estão acontecendo no Ártico, com o derretimento das banquisas e profundas alterações nos territórios polares da Groenlândia, Sibéria e Canadá, também dão o ar de sua graça na Antártica. Até há poucos anos, só no auge do verão austral, entre dezembro e fevereiro, era possível chegar de barco até as praias continentais da Antártica. Nos outros meses, a superfície do mar se tornava gelo sólido, por extensões que podiam chegar a muitos quilômetros a partir das praias. Hoje, esse gelo se derreteu já a partir do final do mês de outubro.

Efeitos percebidos também no mar. Quanto mais nos aproximávamos do continente antártico, a bordo do navio norueguês NordNorge, a quantidade de icebergs surpreendia até os experimentados cientistas internacionais que lá estavam. Memórias do Titanic provocaram arrepios em alguns passageiros: passamos ao largo de montanhas de gelo flutuantes com mais de 50 metros de altura e dezenas de quilômetros de extensão. Se sabemos que, nos icebergs, apenas 20% do gelo aparece à superfície, era fácil imaginar o tamanho dos outros 80% que permanecem abaixo dela.

Fotos: Lamberto Scipioni

VIDA DURA Uma real chegada pelo mar, diante do sargento Roberto dos Santos

Em certas áreas as águas antárticas são tão claras e transparentes que se consegue ver dezenas de metros da parte submersa dos icebergs. Um espetáculo tão bonito quanto assustador. Sobretudo quando o iceberg é muito grande e… azul da cor do céu. “São aqueles feitos de gelo muito velho, às vezes velho de milhares de anos, e que contêm pouquíssimo oxigênio na sua composição”, explica o canadense John Chardine, especialista em geografia da Antártica.

Quando se navega no litoral antártico, é preciso estar pronto para viver uma surpresa atrás da outra. Mas ninguém está preparado para as belezas de tirar o fôlego do Canal Lemaire, braço de mar de 11 quilômetros de extensão e 1,5 quilômetro de largura, entre a Ilha Booth e a Península Antártica. De um lado, os glaciares e as falésias escarpadas da ilha; do outro, as montanhas de cumes arredondados, cobertas de gelo, do continente. No meio, uma superfície marítima de águas azuis, tão tranqüilas que tudo se reflete nelas, duplicando o efeito da paisagem. Em certos pontos, miríades de icebergs de todos os tamanhos conferem ao mar o aspecto de um imenso campo de vidro Fotos: Lamberto Scipionicraquelê. De repente, as águas se agitam e um bando de pingüins passa em corrida desabalada. Compreensível. Atrás deles corre uma foca-leopardo faminta, em busca do seu habitual almoço: quatro ou cinco pingüins al dente.

“Olha lá, olha lá: são as Tetas de Oona (Oona’s Teats)”, avisa o vulcanólogo alemão Uli Dornsiepen, um outro cientista a bordo, apontando para dois portentosos rochedos avermelhados que, lado a lado, realmente lembram gigantescos seios femininos. Uli explica que o próprio descobridor do Canal Lemaire, o inglês Eduard Dallman, assim batizou os dois rochedos, em 1873, em homenagem a sua esposa, Oona…

A visita à Ilha Cuverville, sempre na Península Antártica, aconteceu numa manhã de muita sorte. Cuverville abriga uma das maiores colônias de pingüins gentoo de toda a Antártica. Essa espécie, exclusiva do continente branco, tem a peculiaridade de passar os oito meses seguidos do inverno no mar. No início da temporada fria, centenas de milhares deles pulam nas águas e ficam nelas até o meio da primavera. No inverno antártico, o mar é bem mais quente do que a terra. Certa manhã, entre o final de outubro e o início de novembro, e como obedecendo a algum chamado secreto, todos eles voltam à terra, pulando em grupos para fora das águas e caindo de barriga na neve. No NordNorge havia diversos biólogos especialistas em fauna antártica, mas nenhum deles jamais tinha observado o grande momento do retorno dos gentoos à terra para o início da temporada de reprodução. Pois bem: aconteceu exatamente quando estávamos em Cuverville. De repente, alguém alertou: “Os pingüins estão chegando!” E realmente, primeiro uns dez, depois 20, 100, milhares de criaturinhas vestidas de preto e branco foram saltando para fora do mar. Parecia um milagre. E estávamos lá para ver e fotografar.

Em pouco tempo, os pingüins estavam reunidos no alto e nos flancos das colinas costeiras, fazendo grande alarido, cada um deles buscando reencontrar seu companheiro ou companheira da temporada passada. Os gentoos são companheiros fiéis, e só escolhem outro marido ou esposa quando o outro não aparece para o grande encontro.

Fotos: Lamberto ScipioniFôramos bem avisados: para nós, a distância máxima de aproximação das colônias é de cinco metros. Mas podíamos sentar no chão, sobre a neve, e esperar. Caso algum pingüim estivesse interessado, caberia a ele se aproximar ainda mais. E eles vêm, tão curiosos quanto seus visitantes humanos, não resistem. Aproximam-se até ficar bem perto e nos examinam com atenção, balançando a cabeça para a direita e a esquerda. Depois do exame, diante da pessoa sentada, levantam a cabeça bem alto e, lentamente, como quem faz uma reverência, curvam o pescoço para a frente até o bico tocar no chão. Fazem conosco exatamente o que fazem quando encontram o parceiro procurado: saúdamno com muito respeito. Sabíamos todos qual era a mensagem implícita naquele gesto de cortesia do pingüim para o humano escolhido. Na noite anterior, os biólogos tinham explicado tudo em detalhes: “Eu te reconheço e aceito como meu companheiro. Fique aqui, comigo.”

Como conter umas lágrimas de emoção? Esses encontros foram de poucos segundos, mas duraram uma eternidade e encerraram uma lição difícil de esquecer: mesmo no mundo dos gelos eternos da Antártica, o diálogo homem/natureza pode acontecer. Desde que sustentado pelo respeito mútuo, o pacto de não-agressão, a aceitação das diferenças.

O CONTINENTE DOS EXTREMOS
Imagine um lugar com uma extensão territorial que, no verão, é de 13,7 milhões de quilômetros quadrados, a mesma que Brasil, Argentina, Uruguai, Chile, Peru e Bolívia juntos, mas que, no inverno, com o congelamento dos mares a seu redor, chega a 22 milhões de quilômetros quadrados.

Esse lugar concentra 90% do gelo do mundo, disposto em camadas com espessura que varia entre 2.200 e 4.800 metros. Todo esse gelo representa 80% da água doce do planeta. Porém, apesar de tanta água, trata-se do lugar mais seco do mundo, pois as baixas temperaturas não permitem a evaporação.

Separada dos demais continentes por mares tempestuosos, a Antártica é a mais fria, isolada, ventosa e inóspita região da Terra. Esse continente foi descoberto há apenas dois séculos. Hoje, a presença do homem na Antártica tem como objetivo primordial a pesquisa científica. Dezenas de países instalaram lá bases de pesquisa, entre elas o Brasil, com sua Estação Comandante Ferraz, onde vivem durante todo o ano cerca de 50 pessoas, entre militares, cientistas e auxiliares.

Localizada na Ilha Rei George, no arquipélago das Shetlands do Sul, nossa base só pode ser alcançada por mar durante o verão, ou por helicóptero durante o ano todo. Suas instalações foram projetadas para resistir a temperaturas de 35 graus negativos e ventos de até 200 quilômetros por hora, mantendo a temperatura interna estável.

Mais informações: https://ftp.mct.gov.br/Temas/ Antartica/default.asp