Foi quase uma ópera-bufa. A sessão de encerramento da 17ª Cúpula Ibero-Americana, que ocorria no sábado 10 em Santiago do Chile, foi marcada por um acirrado e inusitado debate ideológico entre líderes políticos da “direita” e da “esquerda”. Depois de Evo Morales ter denunciado uma conspiração americana contra seu governo na Bolívia, foi a vez do presidente da Venezuela, Hugo Chávez Frías. Ele atacou de Che Guevara (renovando a ameaça de “um, dois, muitos Vietnãs”) e saiu atirando contra o exprimeiro- ministro espanhol, o conservador José María Aznar, a quem chamou de “fascista” pelo suposto apoio ao fracassado golpe de 2002 na Venezuela. O sucessor de Aznar, o premiê socialista José Luis Rodríguez Zapatero, educadamente, esperou Chávez terminar e pediu a palavra. E disse que, mesmo tendo profundas divergências políticas com Aznar, o ex-líder merecia respeito por ter sido eleito democraticamente pelos espanhóis. Mas o boquirroto Chávez nunca leu Voltaire, quanto mais Norberto Bobbio. Mesmo com o microfone desligado, ele não parava de falar. Então, o rei Juan Carlos I, inconformado com a deselegância de Chávez, perdeu a fleuma monárquica e, irritado, interrompeu o venezuelano com um “pito”: “Por qué no te callas?”

O que parecia ser um mero incidente diplomático ganhou proporções ciclópicas nos dias seguintes. Os líderes políticos e a mídia européia saILUSTRAÇÃO: FERNANDO BRUM E ALEX SILVAíram em defesa do rei, enquanto Chávez foi defendido por Fidel Castro e Daniel Ortega. A chancelaria espanhola tentou colocar panos quentes, mas o próprio Chávez fez questão de jogar mais lenha na fogueira. Já no domingo, ele disse que Juan Carlos não tinha o direito de mandá-lo se calar. “Exijo respeito porque também sou um chefe de Estado. Ele é tão chefe de Estado quanto eu. Aliás, a diferença entre nós é que eu fui eleito três vezes pelo povo da Venezuela”, disparou. E alfinetou: “Senhor rei, responda, o senhor sabia do golpe de Estado contra a Venezuela, contra seu governo legítimo?”, arrematou Chávez. Na quarta-feira 14, o presidente Lula interveio a favor do colega venezuelano: “Podem criticar o Chávez por qualquer outra coisa, inventem uma coisa para criticar. Agora, por falta democracia na Venezuela não é (…). Na Venezuela já teve três referendos, já teve três eleições não sei para que, quatro plebiscitos, ou seja, o que não falta é discussão”, disse Lula. Ele lembrou que os que criticam Chávez por querer um terceiro mandato não se lembram de líderes que ficaram muitos anos no poder. “Ninguém se queixa do Felipe González, que ficou tantos anos, ninguém se queixa do Mitterrand, que ficou tantos anos, ninguém se queixa do Helmut Kohl, que ficou quase 16 anos”, completou o presidente.

Seja como for, o monarca espanhol não merecia a pecha de golpista, ainda mais lançada por Chávez, que entrou na política em 1992 quando era tenente-coronel e tentou derrubar pelas armas o presidente constitucional Carlos Andrés Pérez. Quando Juan Carlos de Borbón y Borbón se tornou rei de Espanha em 1975, depois da morte do ditador Francisco Franco, o líder comunista Santiago Carrillo, então na clandestinidade, previu que ele passaria à História como “Juan Carlos, o Breve”. O chefe do Partido Comunista Espanhol (PCE) acreditava que o príncipe escolhido por Franco para sucedê-lo seria fiel ao regime e, portanto, acabaria varrido para a lata de lixo da História, como o franquismo. Para sua surpresa, Juan Carlos I não apenas apoiou decididamente a transição à democracia – que incluía a legalização do PCE – como foi a peça-chave para frustrar uma tentativa de golpe militar desfechada em 1981 por nostálgicos do generalíssimo. Os golpistas eram liderados por um fanfarrão, o tenente-coronel da Guarda Civil Tejero Molina. Vestido em uniforme militar, para lembrar que era o comandante-em-chefe das Forças Armadas, o rei Juan Carlos exigiu pela tevê que os insurretos respeitassem as instituições democráticas e obedecessem ao governo legalmente constituído. O gesto firme salvou a jovem democracia espanhola. O velho comunista Carrillo não se fez de rogado: “A partir de agora, somos todos monarquistas! Deus salve o rei!” E Chávez? É verdade que ele foi eleito e reeleito democraticamente. Desde 1999, submeteu as mudanças institucionais a plebiscitos. Também é verdade que a plutocracia venezuelana é golpista e antidemocrática. Mas Chávez jamais se mostrou arrependido da quartelada de 1992, ao contrário – a data, 4 de fevereiro, é comemorada como início da “libertação”. E nos últimos tempos, Chávez vem tentando calar toda a oposição – até antigos aliados – e se perpetuar no poder. Um plebiscito sobre a reeleição permanente está marcado para 2 de dezembro. Enquanto isso, estudantes oposicionistas e grupos chavistas se chocam nas ruas. Chávez talvez se inspire em Luís Bonaparte, presidente constitucional que virou imperador da França. Depois, quem sabe, ele seja nomeado caudillo de Venezuela por la gracia de Diós.