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NO QG DO EXÉRCITO Mangabeira recebe medalha militar em Brasília: “Se nós queremos ser um grande país, precisamos nos armar”

Para entrar no prédio onde funciona o gabinete do ministro Extraordinário de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger, o visitante tem de pressionar seu dedo indicador sobre um sofisticado aparelho de identificação digital. O aparato tecnológico dá um ar de vanguarda ao órgão público encarregado de pensar o futuro do Brasil. No 15º andar, uma placa simples identifica a sala: “Roberto Mangabeira Unger – Ministro”. Dentro, o ambiente espartano comporta apenas um sofá marrom, uma mesa e a foto do presidente Lula. Combina com o homem com cara de poucos amigos, cabelo de corte militar e estranho sotaque americano. É ali que Mangabeira trabalha por até 18 horas por dia nos mais variados temas: educação, saúde, tecnologia, energia, Amazônia, internet, periferia, biodiversidade, crédito, mineração, armas, rodovias, emprego e renda, inclusão, desigualdade. “Sou um ministro que pisa em ovos”, brinca Mangabeira. “Preciso tomar cuidado para não parecer que estou atropelando os outros ministros.”

Padrinho da indicação de Mangabeira, o vice-presidente José Alencar parece satisfeito. “Ele já fez reuniões com todos os ministérios, está sintonizando as idéias com os ministros, para que seja um programa nacional, de interesse do País. Tenho o maior respeito pelo trabalho dele”, elogia Alencar. Mangabeira é um raro caso de quem conseguiu fazer de uma omelete, ovos. Antes de virar ministro, chegou a pregar em um artigo o impeachment de Lula, ao classificar o seu governo como “um dos mais corruptos da história”. O tema é tabu no gabinete. A ISTOÉ, ele disse que não pretendia discorrer sobre o que chama de “temas recorrentes”. “Consegui construir uma boa relação com o presidente”, diz ele. “Fui crítico, mas acabamos chegando a uma boa convivência.” Na terça-feira 13, por exemplo, o ministro ficou três horas no gabinete do presidente, mas mantém reservados os temas de tanta conversa.

FOTOS: PAULO LACERDA/AE – ROBERTO CASTRO/AG. ISTOÉ – ROOSEWELT PINHEIRO/ABR

Mangabeira trabalhou com Brizola no PDT, fez a campanha de Ciro à Presidência e fundou o PRB com Alencar. “Ele realmente é brilhante, mas é um pouco maluco”, dizia Brizola

No dia seguinte à audiência, contudo, voltou a quebrar ovos. Quatro pesquisadores que não se alinhavam com o pensamento do atual governo foram afastados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Presidido pelo economista Márcio Pochmann, o Ipea está vinculado ao Núcleo de Assuntos Estratégicos, comandado por Mangabeira. Pochmann avisou sobre as demissões. Segundo a assessoria do ministro, Mangabeira “deu carta branca e delegou plenos poderes para ele fazer o que quisesse”. Para quem deveria ouvir as mais variadas correntes para formular seus projetos, a aparente retaliação ideológica a pesquisadores independentes é um ato tão anacrônico quanto contraditório. “Isso de despachar colegas economistas por discordar das opiniões faz lembrar de Hugo Chávez, que faz escola na América Latina”, critica o senador Álvaro Dias (PSDB-PR).

A agenda de Mangabeira é justamente o contrário desse samba de uma nota só do Ipea. Diversifica-se em reuniões no Congresso, no Poder Judiciário, com representantes da indústria, comércio, bancos e movimentos sociais. Uma rede de contatos, para formulação de estudos que apontem tendências e regras mais claras para o desenvolvimento das várias áreas do governo. Na sua visão do que deve representar o futuro brasileiro, entram principalmente dois setores: Forças Armadas e Amazônia.

Para ele, um contexto de geopolítica no futuro, com uma mudança do papel do Brasil na ordem mundial, não pode descartar a guerra como uma hipótese. A estratégia de defesa, entende, e a resolução sobre que investimentos fazer, deve levar em conta “circunstâncias específicas de guerra”. “Temos que nos colocar na trajetória dessa evolução futura da guerra”, considera ele.

Tal posicionamento é uma novidade surpreendente na cabeça de autoridades civis do País depois da redemocratização. Mais até que o próprio ministro da Defesa, Nelson Jobim, é Mangabeira quem vem trabalhando a definição da estratégia de defesa do País. É o coordenador do grupo interministerial que elabora o Plano Estratégico de Defesa Nacional. E encanta os militares ao conferir ao setor uma prioridade que não havia antes. “O Mangabeira está pegando o filão das Forças Armadas, ele acha que as Forças Armadas vão mal das pernas, os investimentos na história recente foram ridículos”, diz um ex-assessor do ministro. Entre os militares, Mangabeira já colhe os frutos. Na quartafeira 14, ele atravessou o salão social do Clube do Exército para ser agraciado com a Ordem do Mérito da Defesa.

“Ele tem conversado bastante, não só com a Aeronáutica, mas com o Exército e a Marinha”, diz o comandante da Aeronáutica, brigadeiro Juniti Saito, sem esconder a alegria com o parceiro. “Ele passou outro dia um bom tempo lá no Estado-Maior e nosso pessoal fez então uma apresentação a ele sobre quais são os planos, quais são as estratégias da Aeronáutica, para ele tomar conhecimento nessa área militar.” Apesar do entusiasmo, porém, os comandantes militares preferem esperar ainda um pouco mais para formar completamente a sua impressão sobre Mangabeira Unger. “Não vi ainda a proposta (que Mangabeira prepara para a Aeronáutica)”, diz Saito. “O trabalho dele está muito bom, excelente, mas estamos no início, precisamos ver o desenvolvimento”, pondera o comandante do Exército, general Enzo Martins. “Esperamos o final do filme”, conclui. “A linha é essa”, resume o ministro da Defesa, Nelson Jobim, acerca do trabalho de Mangabeira.

Os adversários de Mangabeira costumam dizer que esse professor de direito e filosofia de 60 anos, que começou a dar aulas na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, com apenas 22 anos, tem sido a vida inteira um guru em busca de um pupilo. Mangabeira já foi próximo de Leonel Brizola. Depois, foi professor e formulador de projetos na campanha à Presidência da República do hoje deputado Ciro Gomes (PSBCE). Fundou, então, seu próprio partido, o PRB, numa curiosa associação com José Alencar e os políticos ligados à Igreja Universal do Reino de Deus. Depois que se afastou de Brizola, o expresidente do PDT costumava falar o seguinte sobre ele: “Ele realmente é brilhante, mas é um pouco maluco”.

A Amazônia é o segundo tema prioritário do ministro de Assuntos Estratégicos. Mangabeira considera que ali se concentra grande parte da diferença que pode definir o papel do Brasil no futuro. Para isso, porém, ele prega uma mudança profunda na forma como até hoje se tratou a região. Nem a floresta intocada defendida pelos grupos ambientalistas nem o desmatamento indiscriminado pregado por alguns desenvolvimentistas. Ou, como ele diz, nem “o fervor da causa ambientalista” nem “o primitivismo das idéias econômicas”. Mangabeira sugere um projeto alternativo para a Amazônia, com um zoneamento econômico e ecológico das suas potencialidades. “Precisa ser um projeto construído coletivamente, junto com as outras repúblicas sul-americanas, com quem compartilhamos a Amazônia”, propõe. O ministro esteve na Amazônia nos dias 8 e 9 de novembro para expor tais idéias. Voltará a tratar delas num simpósio sobre a região que acontece esta semana no Congresso Nacional.

A presidente da Comissão da Amazônia, deputada Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), acha que Mangabeira pode, de fato, construir uma “terceira via” capaz de conciliar ambientalistas e madeireiros. “Estou encantada com o Mangabeira e não há um parlamentar da Amazônia que também não esteja encantado com ele”, diz Vanessa. “Ele é exótico pelo jeito de ser, tem um sotaque horroroso, é uma pessoa fria aparentemente, não é carismático pela aparência, mas é carismático pelo conteúdo”, explica ela.

O “sotaque brasileiro” do ministro, no entanto, ocupa-se também com temas internacionais. Ele prega um novo modelo de administração da internet, a rede mundial de computadores. Acha que o poder de gerir a rede deveria sair das mãos da Corporação para Atribuição de Nomes e Números na Internet (Icann), o organismo que controla a internet, vinculado ao Departamento de Comércio dos Estados Unidos. “O Icann desempenhou um papel importante no desenvolvimento da internet, mas já passou da hora de ceder poderes para uma organização mais aberta”, afirma Mangabeira.

Filho do ex-senador João Mangabeira, o hoje ministro, apesar de ter passado toda a sua vida adulta em Harvard, sempre manifestou o interesse de atuar de alguma forma na administração do País. Daí, talvez, as diversas aproximações que teve de variados políticos e a mudança de opinião sobre a administração Lula tão logo surgiu a oportunidade de poder pôr em prática as suas idéias.

A rotina de ministro tem imposto a Mangabeira alguns sacrifícios. A família – sua mulher, a americana Tamara Lothian, e quatro filhos – ficou nos Estados Unidos. Uma vez por mês, ele faz uma longa viagem para encontrálos. Sai de Brasília numa sexta-feira rumo a São Paulo e, ali, embarca para Nova York, onde pega um avião até Boston. Segue então de carro até Cambridge, em Massachusetts, onde fica a Universidade de Harvard. Na segundafeira à tarde, o ministro já está de volta a Brasília. Quando alguém brinca com seu sotaque americano, Mangabeira responde, de pronto: “O sotaque do meu pensamento é brasileiro.”