16/08/2006 - 10:00
Todos os dias, o presidente da Argentina, Néstor Kirchner, recebe do secretário-geral da Presidência um relato sobre o trabalho de seus ministros e as declarações que estes fizeram à imprensa. Até as fofocas e as intrigas são mencionadas. Em seguida, o presidente chama os ministros, um por um, para a audiência. O único momento em que eles ficam juntos é o da espera na ante-sala do gabinete presidencial, onde podem mofar horas, antes de ser recebidos. O relato, feito por Nicolas Winazki na edição argentina da Newsweek, revela com precisão o estilo ultracentralizador de Kirchner. O problema é que não se trata apenas de uma questão de estilo. Eleito em 2003 com meros 22% dos votos, Kirchner se tornou o mais poderoso presidente civil da história argentina. Hoje, ele controla o Congresso, a maioria dos 24 governos regionais e tem forte influência sobre o Judiciário. Há dias, a Câmara dos Deputados deu mais um passo rumo ao “centralismo democrático” kirchnerista, ao aprovar a “Lei dos Superpoderes” – que já passara no Senado –, concedendo ao mandatário, de forma permanente, amplos poderes para mudar o Orçamento sem consultar o Legislativo. “Não estamos simplesmente diante de uma delegação de poderes, mas de algo mais grave: a apropriação de um Poder constitucional por outro”, criticou a deputada Elisa Carrió, da Alternativa para uma República de Iguais (ARI).
Na melhor tradição peronista, Kirchner vem montando o mecanismo da centralização paulatinamente. Há tempos, ele obteve a aprovação, no Senado, de uma lei que torna permanente os chamados “decretos de necessidade e urgência” (DNU), uma versão argentina das medidas provisórias utilizadas no Brasil e que, a exemplo do que acontece em outros países sul-americanos, permite ao chefe do Executivo praticamente governar por decreto. O mandatário argentino também conseguiu que o Congresso alterasse o Conselho da Magistratura, órgão que nomeia os juízes, permitindo maior controle do Executivo sobre o Poder Judiciário.
Mas Kirchner tem hoje a aprovação de 70% dos argentinos e seria facilmente reeleito em 2007. E não é para menos. Quando ele assumiu, o país enfrentava a mais grave crise de sua história, com recessão, moratória e cinco presidentes num período de dois anos. Kirchner brigou com o FMI e os organismos financeiros internacionais ao anunciar um calote parcial da dívida externa, enfrentou os militares revogando leis que beneficiavam repressores da ditadura e interveio na corrupta Suprema Corte menemista. “À diferença de Menem ou de Alfonsín, Kirchner não prometeu coisas grandiloqüentes. A promessa foi mais singela: ‘Eu vou tirá-los do inferno’”, compara a analista Graciela Römer.
E, em certa medida, ele conseguiu: a Argentina saiu do abismo econômico em que mergulhara em 2001 – nos últimos anos, o país cresceu 9% ao ano, em média –, o desemprego e a pobreza diminuíram significativamente e o presidente ganhou o respeito das organizações de direitos humanos por sua firmeza contra os militares. Por tudo isso, é difícil imaginar que Kirchner tenha razões para mudar seu estilo imperial de liderança. “Eu sei tudo. E nós estamos indo muito bem”, ele costuma brincar com seus colaboradores mais próximos. OK, mas o que acontecerá se a maré virar, o presidente tiver que enfrentar uma grave crise? O guru de Kirchner, o ex-presidente Juan Domingo Perón, apesar da origem militar, sabia adaptar-se aos novos tempos. Mas será que alguém como o atual presidente argentino, que dirige o país como se fosse um pequeno comerciante, centralizador e desconfiado, como disse Nicolas Winazki, conseguirá ter a mesma desenvoltura?