04/05/2005 - 10:00
O advogado paulista Luís Carlos Pellizzon, 50 anos, é protagonista de uma história trágica. Casado, pai de três filhos, é integrante de uma típica família de classe média. Morador de Santo André, na Grande São Paulo, sempre teve boa saúde. Em novembro passado, porém, foi parar no hospital por causa de uma tontura. Estava com pressão alta. Medicado, voltou para casa. No dia seguinte, o sintoma reapareceu, acompanhado de dificuldade de se manter em pé. A suspeita era de um caso de labirintite ou stress. Nenhuma se confirmou. Um mês depois, o advogado já não reconhecia a filha Ana Paula, 32 anos. Andava e se comunicava com dificuldade. Uma semana antes do Natal, não falava nem se movia. E começou a ter convulsões e alucinação. Em janeiro, Pellizzon foi levado ao Hospital Sírio-Libanês, na capital paulista. Foi examinado, mas não ficou internado porque seu convênio médico não dava cobertura. Acabou transferido para o Hospital Nossa Senhora de Lourdes, também na capital. É onde se encontra até hoje. Está mudo, não anda, não enxerga, não ouve e perdeu a memória. “Estamos muito abalados ao ver um homem sadio e de bem com a vida como ele ficar nesse estado em cinco meses”, diz Jacira Pellizzon, a mulher do advogado.
Exames indicam que Pellizzon tem a Doença de Creutzfeldt-Jakob (DCJ). É uma enfermidade rara – acomete um indivíduo em um milhão. Em geral, ocorre em pessoas mais velhas (em torno de 55 – 65 anos), provocando, em curto espaço de tempo, efeitos como demência e perda dos movimentos. Calcula-se que mate em até um ano após o surgimento dos sintomas. No Brasil, o Ministério da Saúde aponta que há 116 mortes causadas possivelmente por DCJ (as suspeitas não foram confirmadas).
Descrita pela primeira vez em 1920, a doença é causada por uma mutação numa proteína presente no organismo, a príon. Ela é encontrada na superfície dos neurônios. Alterada, destrói as células. O processo danifica o cérebro, que se torna esponjoso, e a degeneração progressiva causa os estragos que pouco a pouco paralisam o paciente. Por que ocorre a mutação na proteína? Nem os cientistas sabem completamente. Segundo estimativas internacionais, em cerca de 10% dos casos a alteração surge por um defeito genético. Outra pequena parcela se deve ao contato com tecido ou sangue contaminado (há relatos de contaminação devido a transplante de córnea). Na maioria das vezes, porém, não há causa conhecida.
Nos anos 90, descobriu-se uma variante da DCJ, provocada pela ingestão de carne contaminada pelo príon alterado. Isso porque na década de 80 começaram a surgir na Europa casos de gado com sinais de raiva. Análises feitas nos animais mortos revelaram que eles apresentavam encefalopatia espongiforme bovina, enfermidade causada pelo príon mutante, que dava ao cérebro um aspecto de esponja. Exatamente como nos humanos. O problema ficou famoso como doença da vaca louca. E esse nome se popularizou ainda mais quando foram relatados os primeiros casos de morte de pessoas, principalmente na Inglaterra, devido ao consumo da carne de ruminantes doentes.
Confusão – Foi por causa dessa variante humana da doença da vaca louca que o caso de Pellizzon se transformou em uma grande confusão. Sua história chegou a ser alardeada de forma precipitada para a imprensa como o primeiro caso do gênero no Brasil. A confusão ocorreu porque faltou à família informação médica correta. Ana Paula queixa-se que nenhum médico explicou em detalhes o caso do pai. “Em janeiro, falaram que ele não voltaria mais do coma. Depois, me ligaram para dizer que era uma doença hereditária. Fiquei surpresa porque nenhum parente teve algo parecido”, conta.
Na semana passada, os médicos de Pellizzon garantiram que não se trata da variante. Alguns dos principais especialistas brasileiros no assunto também foram enfáticos na exclusão. “Os exames feitos e a inexistência da enfermidade no rebanho brasileiro mostram que esse não é um caso de variante da doença da vaca louca”, afirma José Antônio Livramento, chefe do Laboratório de Investigação Médica em Neurologia do Hospital das Clínicas de São Paulo (HC/SP). O laboratório é o único no Brasil que faz um teste (o da proteína 14-3-3) que pode diagnosticar a DCJ – em quatro anos foram solicitados cerca de 150 exames do tipo, e a doença foi apontada em cerca de 20 pacientes. O resultado do exame e a análise dos sintomas é que permitem aos especialistas descartar a variante.
Na DCJ, os sintomas iniciais são os comprometimentos cognitivos. Por isso, freqüentemente ela é confundida com o mal de Alzheimer, caracterizado por
falhas de memória. Na variante, os contaminados são mais jovens e apresentam primeiro desequilíbrio, além de terem ingerido carne das regiões em que o mal existe. Informações desse tipo são essenciais para o diagnóstico. O problema
é que até médicos desconhecem esses dados. Por isso, não é raro um caso da estranha Doença de Creutzfeldt-Jakob ser confundido com o mal da vaca louca. “Volta e meia alguém espalha que há a variante por aqui. Alardear isso sem a comprovação devida é um desserviço”, critica o médico Milberto Scaff, chefe do setor de neurologia do HC/SP.
De fato, é necessário muito cuidado. A doença da vaca louca levou à proibição
da venda de carne de rebanhos criados em diversos países, a maioria europeus.
No Brasil, o Ministério da Agricultura assegura que desde a década de 90 não
importa mais animais e produtos derivados (farinha de osso, por exemplo) das
áreas afetadas. Também vetou em 2001 o uso de rações que levam esses
produtos derivados. Além disso, faz exames nos ruminantes mortos com sinais
de doenças nervosas.