07/11/2007 - 10:00
FEIRA LIVRE A instalação Ainda viva, de Laura, feita com sete mil maçãs
Quem entra no ambiente branco e asséptico da Galeria Nara Rossler, em São Paulo, é logo recebido com um forte cheiro de maçã. Não se trata de uma essência para perfumar o ambiente. Na sala principal da galeria, sete mil frutas descansam sobre uma mesa de mármore branco, esparramando-se pelo chão de cimento. A obra é da paulista Laura Vinci e chama-se Ainda viva. Há alguns minutos dali, no Museu de Arte Moderna, no Parque do Ibirapuera, outra intrigante instalação apela para o olfato do visitante. Intitulada Quebra-molas, a criação da carioca Débora Bolsoni reproduz a forma desse “redutor de velocidade” com uma tonelada da prosaica paçoquinha de amendoim. São obras com prazo de validade: as maçãs de Laura, ao apodrecerem, serão doadas a alguma ONG para virar ração; a farinha de amendoim de Débora deve sofrer uma manutenção até o final da mostra, prevista para se encerrar em janeiro do ano que vem. Para alguns detratores dessas experimentações, caso do poeta e crítico de arte Ferreira Gullar, elas são efêmeras em todos os sentidos. “Essa produção vai morrer aí e nem tem mesmo como sobreviver. Só nesse ponto eu concordo com esses artistas: não vai sobrar nada dessa produção contemporânea”, diz Gullar.
Quebra-molas, de Débora, moldado com uma tonelada de paçoca de amendoim
Com a palavra os artistas. Laura faz uma argumentação erudita, baseada na história da arte, para explicar sua instalação. Ela diz que usou a maçã como símbolo da transitoriedade das coisas vivas em oposição ao mármore, uma pedra que sempre esteve ligada à perenidade. Outra de suas referências foi a presença habitual da maçã nas naturezas-mortas, especialmente aquelas feitas pelo francês Paul Cézanne. O pintor demorava tanto para terminar suas telas que no processo as frutas chegavam a apodrecer no seu ateliê. “Não estou utilizando maçãs apenas porque as pessoas as comem na vida real”, diz Laura, que cuidou sozinha da compra das frutas, adquiridas no Ceagesp, o maior centro de abastecimento de horticultura do País. Débora se defende com argumento parecido. A carioca explica que lançou mão da paçoca porque precisava de um material mais suave, em contraposição à rigidez do quebra-molas. E que escolheu esse material orgânico – e não areia ou serragem, por exemplo – porque se trata de um alimento com que o brasileiro tem uma “identidade simpática”, remontando da cultura indígena e incorporado mais tarde ao calendário cristão. “Não é uma apresentação da paçoca, ou seja, não estou apenas colocando-a na galeria. Existe uma tentativa de simbolização”, diz Débora.
Perfeito. Mas, se Laura ou Débora não explicarem seus objetivos, todos esses significados jamais serão compreendidos pelos visitantes. Gullar recarrega suas munições: “Trata-se da arte da boa idéia, da caninha 51. Esse tipo de trabalho não tem artesanato, não tem técnica, não tem linguagem. Já se usou de tudo: balde, bacia, ovo frito. É uma falta de imaginação, uma grande bobagem que não me interessa. Prefiro ficar em casa lendo Hamlet.” Segundo Gullar, esse beco sem saída em que enveredou a produção contemporânea nasce de um grande equívoco: o de se imaginar que a pura expressão possa ser uma obra de arte. “Uma mancha no chão, uma água escorrendo, tudo isso é expressão, mas não é arte. Se alguém pisa no meu pé e eu grito de dor, isso é uma expressão, mas não arte”, diz.
O curador Moacir dos Anjos pensa o contrário. Nome por trás dessa edição do Panorama da Arte Brasileira (nome da exposição da qual o Quebra- molas de Débora Bolsoni faz parte), ele acha que as questões provocadas no visitante da mostra já são em si uma situação estética. “Quando um artista como a Débora decide trabalhar com a paçoca, ele não está preocupado com o fato de ser um alimento perecível. A idéia era encontrar um material que fosse ligado à memória, à questão do afeto”, diz. “Na situação criada, é o visitante que fica com receio de provocar um acidente ao se aproximar do quebra-molas.” Mesmo assim, alguns desavisados esbarraram no monte de farinha, que, é bom frisar, não foi fácil de ser feito. Débora precisou de dois assistentes para misturar o amendoim moído e a farinha de mandioca, aos quais eram adicionadas quantidades generosas de óleo para dar liga. Em suas pesquisas, ela descobriu que essa receita não mudou desde que passou a ser usada nas festas juninas pelo Brasil afora. Seu cheiro forte certamente vai atrair os ratos famintos do Parque do Ibirapuera. Para evitar que a mostra vire uma versão vanguardista de Ratatouille, o museu dispensou as ratoeiras. Simplesmente dedetizou a área ao redor do quebramolas que dá água na boca.