Pela primeira vez num debate, durante o Fórum Universal das Culturas, em Barcelona, na Espanha – que começou dia 9 de maio e termina no dia 26 de setembro – ouviu-se o prefeito da cidade, Joan Clos, falando espanhol. Idioma oficial da Catalunha, proibido na época da ditadura de Franco, o catalão tem nove milhões de falantes e costuma ser álibi político na defesa contra o mundo globalizado. Em um fórum que prega a diversidade cultural, o catalão acabou se tornando a língua mais falada e mal se podia imaginar a voz de Clos em outro idioma. Pois, a presença do ex-presidente do Brasil Fernando Henrique Cardoso no evento foi tão marcante que acabou fazendo com que o público presente no debate Globalização, Diversidade e Identidade escutasse o prefeito de Barcelona falando espanhol.

Em resposta ao ex-governador da Catalunha, Jordi Pujol, que afirmou que não falaria o banal inglês do mundo globalizado, FHC acabou convencendo Pujol, Clos e os demais presentes que a globalização não ameaça a identidade cultural, pelo contrário, promove a diversidade. “Não preciso falar português, como os senhores falam catalão. Me sinto seguro falando em espanhol e acho isso mais respeitoso com a platéia”, disse. Aplausos não lhe faltaram. Os políticos presentes não se sentiram ofendidos. Ficaram, na verdade, lisonjeados com a aula magna de FHC. “Ele é brilhante, brilhante”, comentava Clos, com seus assessores. Entre um discurso e outro, tomando um café nos corredores do Fórum, e em seu hotel, por telefone, Fernando Henrique concedeu esta entrevista em que fala da globalização, da necessidade de mudanças no FMI e do governo Lula.

ISTOÉ – É um erro as pessoas criarem resistência a outras línguas para
proteger sua identidade?
Fernando Henrique Cardoso – É. Há que se manter a língua como identidade, desde que não seja em detrimento de línguas de comunicação mais ampla. O mundo, hoje, não te permite uma postura apenas defensiva e sim demanda uma postura participativa. A cultura é algo móvel e as línguas também. Evidentemente, isso não quer dizer que as línguas locais serão substituídas por uma língua universal.

ISTOÉ – O rancor de povos que tiveram suas culturas reprimidas por
regimes ditatoriais, como os catalães, muitas vezes os torna defensivos
e avessos à globalização.
Fernando Henrique – Pois é. Mais do que raiva e ódio, há que haver algum grau de generosidade com o próximo, senão a coisa também não anda. Por isso eu terminei o debate falando em utopia. Se você não tiver uma posição mais generosa, mais positiva, mais para a frente, vai ficar simplesmente nas entidades de resistência. Ou seja, tentando resistir a tudo e se privando de participar desse mundo novo.

ISTOÉ – Durante sua presença no Fórum, a iraniana Shirin Ebadi, Prêmio Nobel da Paz de 2003, declarou que para o povo iraniano uma das piores consequências da guerra do Iraque foi a ocupação americana e sua consequente distorção do conceito de democracia. O sr. concorda?
Fernando Henrique – A maneira como se conduziram as coisas faz com que se confunda democracia com a forma americana de democracia. A meu ver, certos valores devem ser preservados universalmente. Por exemplo, não se pode aceitar tortura, discriminação contra mulher, pedofilia. Mas a forma que isso toma, politicamente, tem que variar porque não existe uma só maneira de resolver as coisas. Por isso eu acho que precisamos reduzir a um corpo mínimo e fundamental de valores realmente universais e o resto tem que dar espaço para a história de cada país, para as instituições se organizarem conforme sua tradição histórica, senão vai haver imposição de um país sobre outro, em nome da democracia.

ISTOÉ – E a eleição americana? Há uma avaliação de que um republicano é sempre melhor para o Brasil que um democrata. É verdade?
Fernando Henrique – Isso era assim no passado. Hoje mudou porque tanto republicanos quanto democratas têm um problema sério que é a pressão dos sindicatos contra o desemprego. A proposta que eu ouvi dos democratas, esses dias, é de que se deve manter uma postura mais multilateralista, aberta. Tanto em termos de Estados Unidos como de Brasil temos que ver como a coisa se desenrolará. Afinal, nessa matéria cada um puxa a brasa para sua sardinha.

ISTOÉ – Como o sr. vê o futuro do Mercosul com a política protecionista
argentina?
Fernando Henrique – No momento, há uma incompreensão. O governo brasileiro tem agido bem, até com muita flexibilidade e tolerância. Na verdade, a indústria argentina precisa aumentar o grau de investimento lá, ou nunca vai ser competitiva com a indústria brasileira. É preciso aumentar o investimento produtivo, e não
as cotas para produtos brasileiros. A Argentina tem uma economia agrícola extraordinária e isso vai dar sempre ao país uma folga no comércio internacional. Geralmente, eles têm até um superávit no comércio conosco por causa do petróleo e do trigo. Mas na manufatura eles têm que fazer um esforço. Não adianta imaginar que atrapalhando a nossa vida vão mudar a deles.

ISTOÉ – O que o sr. quer dizer com “o governo brasileiro tem agido bem”?
Fernando Henrique – Eu quero dizer que o governo não fechou as grades. Cedeu. Em nome, claro, de manter o Mercosul, que parece ter um valor maior do que as cotas. Mas também não poderá ceder sempre. Chegará um momento em que o Brasil terá que dizer: “Ah, assim não dá, vamos chamar os argentinos para uma conversa mais séria.”

ISTOÉ – O que o sr. diz da política externa do governo Lula?
Fernando Henrique – Eu acho que ela tem dado seguimento à tradição da política externa brasileira. O que quer dizer que o Brasil tem que ter uma política aberta a todos os setores do mundo. Não pode se concentrar numa relação só com um setor, uma potência. É uma política que tem que defender nossos interesses e que tem que ter em vista nossas enormes necesidades de crescimento, desenvolvimento e acesso a mercados. Tentei fazer tudo isso, alguma coisa consegui, e estou de acordo com o que está sendo feito. Acho que, nesse sentido, o País está avançando.

ISTOÉ – Há indicadores de que a economia brasilera está começando a reagir. Seria uma retomada geral da economia, uma – ao contrário do que diz o PT – “herança bendita” do governo FHC?
Fernando Henrique – Não tenho dúvida de que, se a herança fosse maldita, eles já tinham abandonado. Se não abandonaram, é porque é boa. Eu acho que o Brasil, hoje, tem chances de crescer. Crescimento quer dizer investimento. Nesse momento, o que está havendo é uma política macroeconômica dura, fiscalmente dura, que rendeu seus frutos, e uma expansão do comércio internacional.

ISTOÉ – Mesmo com denúncias no Banco Central e de outras suspeitas de irregularidade, a economia caminha bem. Até que ponto economia e  política são independentes?
Fernando Henrique – A economia depende de mercado. E o crescimento hoje se deve basicamente a dois fatores: 1) à disciplina macro-econômica; 2) à expansão dos mercados internacionais. Os preços estão favoráveis e os Estados Unidos estão com os juros ainda baixos. A China também. Isso não tem muito a ver com o manejo direto do governo, da administração. Não ter corrupção é bom para a saúde da democracia, para o povo, mas a economia não depende diretamente disso.

ISTOÉ – Os governos estão muito parecidos. Ainda se pode falar em  esquerda e direita?
Fernando Henrique – Hoje, para mim, quem fala em esquerda é quem defende maior justiça social, não mais o controle dos meios de produção. Você é eleito pela massa por suas promessas, mas chega ao governo e não pode fazer tudo, tem que cumprir outros compromissos. Isso fragiliza muito a democracia. Nesse sentido os governos estão muito parecidos.

ISTOÉ – Diante do enfraquecimento dos governos, o que se pode pensar  sobre a “governança global”– tema central do seu ciclo de debates no  Fórum Universal das Culturas, em Barcelona?
Fernando Henrique – Governança global seria bom. Precisaríamos de algumas regras que permitissem ampliar o grau de democratização dos governos globais. Pegue o FMI, você vota de acordo com o controle do número de ações que tinha num determinado momento. Ou seja, o Brasil tem um peso menor que a Bélgica. Pode? E o nosso PIB é muito maior, não tem democracia nisso.

ISTOÉ – O sr. pode resumir o desafio de governar num mundo globalizado?
Fernando Henrique – Há duas linhas principais nessas várias dificuldades. A primeira é a luta do olhar de dentro contra o olhar de fora. Você é eleito presidente e se preocupa em ajudar o seu país a crecer, a estar em sintonia com os outros mercados, outros países. Enfim, com a economia mundial. Mas aí o seu eleitor, a sociedade civil, com razão, cobra de você um olhar para dentro, para os problemas regionais do país. E você tem que estar atento às duas coisas. Outra grande dificuldade tem relação com as três principais instituições da globalização: o FMI, o Banco Mundial e a Organização Internacional do Trabalho.

ISTOÉ – Como assim?
Fernando Henrique – Precisa haver uma democratização dessas instituições. O FMI deveria ser uma espécie de banco central internacional, ser independente, responder por seu próprio destino e não estar tão atrelado aos países ricos, nem fazer do mundo globalizado seu refém. O Banco Mundial, por sua vez, acaba funcionando como provedor de bem-estar social dos países pobres. A Organização Mundial do Comércio acaba sendo, no fundo, a única dessas instituições que tem força própria, que presta contas à sociedade civil e legitima os interesses de cada país. Deveria ser assim com tudo, deveria haver um controle democrático das instituições.

ISTOÉ – Isso quer dizer que acaba estando tudo nas mãos das multinacionais?
Fernando Henrique – A regra que existe é das multinacionais, mas elas devem ser reguladas pela sociedade. Não importa se é uma empresa estatal ou privada, devem haver regras para controle da atuação delas, há que se prestar contas à sociedade.

ISTOÉ – O que mais o sr. poderia falar sobre o governo Lula?
Fernando Henrique – Creio que Lula tomou decisões que foram corretas para garantir a transição e não desorganizar a vida do País. Além disso, é política, uns querem uma coisa, outros querem outras. Como ex-presidente, quero que o País vá bem. E está indo. Já deu exemplo de que é um país democrático. Ajudei na sucessão para um partido que criticou o governo anterior o tempo todo. E isso demonstra que Lula também tem a mesma convicção democrática.

ISTOÉ – Durante sua participação no Fórum, o ministro Gilberto Gil disse  que sempre soube que o governo Lula seria uma continuação do governo  FHC. O sr. concorda com isso?
Fernando Henrique – Não sei se é continuidade. Certos avanços foram feitos,
outros o presidente ainda vai fazer. Política não é uma coisa de vida ou morte.
Tem que entender a amplitude, é necessário que assim seja. Acho que essa maturidade que vem sendo demonstrada no País é muito importante. Quando
você assume o governo, percebe que as coisas são muito mais difíceis do que quando está fora. Eu acho que já fiz o que devia fazer. Agora estou fazendo outras coisas, estou escrevendo, estudando, participando de debates.

ISTOÉ – Sobre a participação do PSDB nas eleições municipais.  O que o sr. espera?
Fernando Henrique – O PSDB tem chances em muitos locais, principalmente em São Paulo com a candidatura Serra e em outras cidades importantes também. Mas é difícil prever. As municipais são eleições em que se começa falando sobre o Brasil e termina falando sobre sua cidade, seus problemas. Aqueles que se mostrarem mais capazes de solucionar esses problemas serão os vencedores.