A advogada paulista Patrícia Peck é apaixonada pelas tecnologias da informação. Começou a trabalhar aos 13 anos programando jogos para o videogame Atari que virou febre entre os adolescentes na década de 1980. Patrícia tornou-se adulta e, atenta às transformações da sociedade, decidiu estudar advocacia na Universidade de São Paulo. Agora, aos 30 anos, ela está consolidando uma das mais novas especialidades profissionais no Brasil: a do direito digital. É a maior autoridade sobre o uso da internet e atualmente oferece treinamento ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República e aos maiores bancos do País. Seu nome também é referência de promotores públicos federais que exigiram o fechamento do Orkut – o site de relacionamentos do Google em que boa parte dos cadastrados pratica crimes que vão da difamação e discriminação racial à pedofilia. Para ela, a sociedade atual usa a internet de uma forma displicente e qualquer um pode se tornar criminoso sem se dar conta.

ISTOÉ – Ninguém cumpre a lei na internet?
Patrícia Peck

A internet não é uma terra sem lei. Quem se relaciona virtualmente responde por seus atos com base na Constituição Federal e nos Códigos Civil e Penal. O que falta é um código específico para nortear o uso da internet. Não temos uma lei que enquadre os spammers (quem envia e-mails para um grupo de contatos sem autorização prévia). Quem recebe um spam pode, no máximo, colocar o endereço de e-mail do remetente em uma lista negra mantida pelos provedores. Mas pelas leis vigentes não há como punir esse spammer.

ISTOÉ – A falta de uma legislação específica gera brechas às práticas ilícitas?
Patrícia Peck

Sim. Para ser punido por um furto, por exemplo, é preciso que alguém retire algo de alguém. Só que na sociedade digital é possível copiar um arquivo e até um servidor sem retirá-lo da máquina. Quando isso acontece nas empresas, elas conseguem, quando muito, indenizações por danos sofridos.

ISTOÉ – O que tem sido feito para fechar essas lacunas?
Patrícia Peck

Atualmente existem 50 projetos de lei no Congresso Nacional. Houve duas alterações do Código Penal incluindo os crimes cometidos na internet. Graças a essas mudanças, inserir dados falsos em banco de dados eletrônicos da administração pública pode terminar em 12 anos de prisão. Mas isso só vale para a administração pública.

ISTOÉ – O que seria um crime hediondo na internet?
Patrícia Peck

O dano à imagem. E existem diversos casos julgados no Brasil que servem de referência, algo que no direito chamamos de jurisprudência. Com a expansão dos celulares e das webcams, virou moda colocar foto de todo mundo na internet. Disseminá-las sem autorização é crime porque fere o direito de imagem. Pense na seguinte situação: no colégio, um garoto tira a foto da calcinha de uma colega e coloca essa imagem em um site, junto com telefone e um preço, dando a entender que ela é uma garota de programa. As pessoas não têm noção do vexame que isso pode gerar e da dificuldade de se apagar um conteúdo da internet.

ISTOÉ – Uma indenização seria suficiente?
Patrícia Peck

Essa é uma discussão acalorada. Na Europa, tenta-se multiplicar o tempo em que esse conteúdo ficou no ar pela quantidade de cliques gerados (na linguagem da internet, isso se chama page view). Essa informação é obtida por programas de computador disponíveis na própria rede que rastreiam os acessos no mundo todo. Aí se gera um número que serve de referência. Por exemplo: 100 vezes o salário mínimo.

ISTOÉ – É pouco?
Patrícia Peck

O entendimento internacional é o de que a internet funciona como um meio de comunicação social. Só por isso já se considera que deve haver agravante de pena porque o nível de exposição das pessoas é maior. Proporcionalmente, talvez tão grande quanto o da televisão. Devemos lembrar que um conteúdo difamatório ou de injúria publicado no Brasil pode ser acessado em qualquer parte do mundo.

ISTOÉ – Os pais estão educando seus filhos corretamente para que situações assim não aconteçam?
Patrícia Peck

Não. E eles se esquecem que podem responder por crimes cometidos por seus filhos. É o que diz a lei em relação aos menores de 18 anos. Os jovens precisam ouvir de seus pais que não dá para escrever tudo o que pensam em blogs, e-mails ou comunidades virtuais porque responderão por suas idéias caso alguém se sinta ofendido por elas. Emoções que antes eram manifestadas verbalmente hoje ficam registradas na internet. Existem casos de demissões por justa causa devido a manifestações desapropriadas em páginas do Orkut e o mau uso de e-mails corporativos.

ISTOÉ – Isso não pressupõe uma invasão de privacidade dos funcionários?
Patrícia Peck

Os e-mails são da empresa, não do funcionário. Esse é o entendimento da Justiça brasileira. Em casos de processo, ela determina a perícia do computador, que não entra no processo como prova, mas como testemunha. Hoje consegue-se extrair informações de servidores de internet. Dá para saber, por exemplo, se um internauta entrou em site de pedofilia. Com a tecnologia, estamos aumentando a capacidade de geração de provas. Portanto, não adianta deletar uma mensagem. Não é porque ela desapareceu de sua caixa postal que não pode ser recuperada.

ISTOÉ – Como assim?
Patrícia Peck

Quem trabalha em uma empresa cujos computadores operam em rede deixa rastro de tudo o que faz. Se alguém comete um erro e altera um documento por engano e, mais tarde, tenta incriminar outro colega, não tem como se livrar da responsabilidade. Existem programas de computador que chegam à primeira pessoa que gerou o documento, recuperando passo a passo a história desse arquivo digital. Hoje se você for assaltado ao sair de um banco, na calçada, as chances de identificar o ladrão são quase nulas, mas, se ele lhe roubou pela internet, as chances de apanhar esse larápio são bem maiores.

ISTOÉ – Criminosos não têm como apagar seus rastros?
Patrícia Peck

Esse é um dos maiores problemas dos investigadores de polícia. Diariamente, as pessoas recebem e-mails falsos supostamente enviados por instituições como Correios, Receita Federal, Serasa. Basta clicar sobre elas para que a máquina fique automaticamente infectada. Uma dessas pragas virtuais faz com que o computador comece a disparar sozinho o vírus para a rede de e-mails cadastrados na máquina. Também podem disparar um programa conhecido como cavalo de Tróia (trojan), que grava tudo o que for digitado no teclado. Todos os equipamentos infectados passam a ser monitorados à distância por hackers, que assim obtêm o número de contas bancárias, senhas e dados pessoais. Com essas informações, eles começam a praticar crimes usando outras pessoas como laranjas.

ISTOÉ – Os peritos não detectam esse truque?
Patrícia Peck

Sim, mas o problema é que, em geral, o criminoso se infecta com o mesmo vírus para despistar a polícia. Ele diz que caiu no mesmo “conto do vigário”. Temos um pedófilo em São Paulo que não pôde ser enquadrado porque também estava infectado. Evidentemente, há alguns casos que permitem se chegar ao verdadeiro criminoso. Recentemente, tivemos um caso em que um hacker criou um e-mail em nome de uma outra pessoa para guardar informações de fraudes eletrônicas, como senhas de acesso a contas bancárias. O suposto dono do e-mail não sabia disso, mas foi o primeiro a ser investigado. Juridicamente, é um caso de difícil defesa porque a lei diz que a responsabilidade recai sobre o dono do equipamento até que se prove o contrário.

ISTOÉ – Quais cuidados devem ser tomados para evitar problemas?
Patrícia Peck

Nunca revele senhas nem passe informações pessoais por telefone. Usuários de banda larga têm sido os mais negligentes. Muitas vezes deixam o equipamento ligado e qualquer um pode acessá-lo.

ISTOÉ – Como fica essa situação nas empresas?
Patrícia Peck

Elas detêm as ferramentas de trabalho, computadores, redes, e-mails, telefones, e sabem que responderão se algum funcionário cometer alguma irregularidade. Por isso, a maior parte delas começou a definir regras para o uso da internet. Recentemente, dois alunos da Universidade de São Paulo perderam suas teses acusados de plágio. Eles tinham retirado o conteúdo de sites que proibiam o uso das informações.

ISTOÉ – O que acontece se um funcionário, por engano, enviar um e-mail para alguém que não devia?
Patrícia Peck

A culpa não é da máquina. A responsabilidade civil é de quem enviou. E se isso causar algum dano à empresa, certamente o remetente será incriminado. Alivia se enviar outro e-mail alertando o destinatário a não ler o conteúdo da mensagem anterior. Não adianta simplesmente deletá-la e fingir que nada aconteceu. As máquinas hoje são testemunha de nossa conduta de uma maneira como nunca vimos antes.

ISTOÉ – Não podemos mais ter direito ao arrependimento?
Patrícia Peck

Os internautas estão sendo mais ingênuos que maldosos. Precisamos ensinar que fazer parte de uma comunidade racista ou de apologia a drogas, por exemplo, pode trazer sérias conseqüências.

ISTOÉ – Isso não é um golpe na liberdade de expressão?
Patrícia Peck

A Constituição garante a liberdade de expressão, mas ela só vale se for vedado o anonimato. Ou seja: as pessoas podem dizer o que pensam, mas precisam assumir o que dizem. Se alguém gera um dano social a partir de suas idéias veiculadas em jornais, rádios,
televisão ou na internet, responderá por seus atos. Essa turma diz o que bem entende e comete barbaridades em comunidades do Orkut. Em São Paulo, há uma lei que obriga os cybercafés e as lan houses a exigirem identidade dos internautas. Menores de idade devem ainda dar o nome dos pais e da escola onde estudam.

ISTOÉ – A campanha eleitoral começou e já existem comunidades virtuais difamando candidatos em nome de seus concorrentes. A Justiça tem condições de monitorar esses crimes?
Patrícia Peck

Não cabe aos tribunais monitorar a internet, mas sim aos comitês partidários. A lei eleitoral prevê que os candidatos podem ser responsabilizados caso algum internauta publique conteúdo difamatório falando em nome desse candidato. Mas eles estão atentos. Recebi pedidos de orientação de diversos partidos e, isoladamente, de um presidenciável e de um candidato a governador.

ISTOÉ – Os candidatos que enviam santinhos eletrônicos ferem a lei?
Patrícia Peck

Poderiam ser enquadrados como spammers, mas existe lei que garante o direito à livre iniciativa. Na prática, quer dizer que todo mundo tem o direito a fazer um primeiro contato com alguém, e isso inclui enviar um e-mail. Acontece que os candidatos costumam colocar um robô que sempre reenvia a mensagem como se fosse a primeira vez. Pela lei genérica, eles não poderiam ser punidos. E, como não existe uma lei específica prevendo esse recurso tecnológico, esse tipo de prática fica recorrente.