Só mesmo uma instituição com um bilhão de seguidores e mais de dois mil anos de trajetória poderia, em pleno século XXI, deixar o mundo em suspense, tentando decifrar um sinal de fumaça. Por longuíssimos dez minutos, a partir das 17h50 (horário local, 12h50 em Brasília) da terça-feira 19, a multidão apinhada na praça São Pedro não conseguiu distinguir o branco do negro. Quando começou a sair da chaminé instalada na Capela Sistina pela terceira vez desde a abertura do conclave, a fumaça parecia escura. Chegou a confundir-se com o céu nublado de Roma. Depois, clareou um pouco e, em seguida, deu uma ligeira escurecida. Nesse momento, o repicar distante de sinos provocou uma espécie de euforia contida no rosto dos fiéis. Eram apenas as badaladas das seis da tarde. Mais alguns instantes e rolos brancos, seguidos pelo badalar vigoroso dos sinos da Basílica de São Pedro, confirmaram que o 265º papa da história estava escolhido. “Habemus papam”, anunciou o cardeal chileno Roger Arturo Medina Esteves. “Josephum Sanctae Romanae Ecclesiae Cardinalem Ratzinger”, completou, após longa pausa. Guardião da doutrina durante o longo pontificado do polonês Karol Wojtyla, o alemão Ratzinger tornou-se o sucessor de João Paulo II com o nome Bento XVI. Pela segunda vez em quase cinco séculos, o conclave escolheu um papa não italiano.

Sorridente, visivelmente confortável na sacada da basílica, Bento XVI fez seu primeiro pronunciamento ovacionado pela mesma multidão que clama pela santificação de seu antecessor. “Depois do grande papa João Paulo II, os cardeais elegeram a mim, um simples e humilde trabalhador da vinha do Senhor”, afirmou em tom suave, inusitado em seus discursos. “Conforta-me o fato de que o Senhor sabe como trabalhar e agir, mesmo com instrumentos insuficientes.” Aos 78 anos, completados quatro dias antes de ser eleito o sumo pontífice, Ratzinger representa a vitória da rigidez conservadora sobre a flexibilidade reformista.

Apontado como um dos maiores teólogos da atualidade, ele jamais mascarou
suas posições, nem hesitou em fazer uso do pulso forte, como na época em que enquadrou a Teologia da Libertação na América Latina. Dos anos 80 para cá,
vem-se apegando cada vez mais aos dogmas. Na Sexta-Feira Santa, desfechou
um duríssimo ataque à “sujeira” no interior da própria instituição e disse que a barca de Pedro estava adernando. Na missa que antecedeu a primeira votação do conclave, o ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé jogou por terra a possibilidade de os católicos escolherem as regras que desejam seguir na religião. “Ter fé clara, segundo o clero da Igreja, é freqüentemente rotulado como fundamentalismo”, pregou na homilia. “Vai se constituindo uma ditadura do relativismo, que não reconhece nada como definitivo e deixa como última medida
só o próprio eu e a sua vontade.”

Sotaque alemão – Se depender apenas de Bento XVI, acabou essa história de se apresentar como católico não praticante, bastante usual no Brasil. “Ele não se incomodará em diminuir o rebanho de um bilhão para 300 milhões de fiéis”, afirma o vaticanólogo alemão Andreas Englisch, do jornal Bild. “Mas não aceita o católico que um dia consulta uma cartomante e no outro vai à missa.” Pela expectativa de Englisch, o novo pontificado não terá grandes marcas políticas, já que uma das características de Ratzinger é refletir muito antes de manifestar-se nesse campo. Ele também não deverá primar pelo caráter missionário imprimido por João Paulo II, que participava de peregrinações e percorria o mundo. Adepto de caminhadas no entorno da praça São Pedro, Ratzinger evita viagens. E, ao contrário do que aparentou ao se apresentar pela primeira vez como Bento XVI, não gosta de falar para multidões.

Em Roma e em cada paróquia que acompanhou a longa agonia protagonizada por João Paulo II, a escolha do novo pontífice em um conclave rápido, de apenas dois dias, significou um alívio. O sotaque alemão de Ratzinger, porém, não inspira confiança. Há exatos 60 anos do final da Segunda Guerra Mundial, os fiéis reunidos na praça São Pedro entraram em êxtase. A pouca distância desse epicentro de religiosidade, as brincadeiras em torno de sua consagração eram, no mínimo, de gosto duvidoso. Incluíam fazer saudações ao estilo nazista e prognosticar o surgimento de Adolf II, em referência a Adolf Hitler, líder do III Reich. Primeiro
alemão a ser eleito papa desde a Idade Média, Ratzinger conta a seu favor uma deserção da Juventude Hitlerista, mas seus princípios extremamente rígidos dão margem a comparações estapafúrdias, muito mais pelo passado do papado – a omissão de Pio XII em relação ao Holocausto é o maior exemplo – do que pela vida pregressa do novo pontífice.

Avesso à frouxidão da doutrina e à modernidade, ele considera o catolicismo como a “verdade” e classifica as outras religiões como “deficientes”. Recém-apontado pela revista americana Time como um dos 100 homens mais poderosos do mundo, Ratzinger tem, sem dúvida alguma, potencial para levar a Igreja Católica a um retrocesso sem precedentes. A escalada do posto de guardião da doutrina para o trono de São Pedro, como Bento XVI, fará sua voz reverberar com potência ainda maior. Lembrar que Bento XV (1914-1922) marcou época pela capacidade de diálogo e por tentar impedir a Primeira Guerra Mundial pouco ajuda diante do horizonte sombrio desenhado pelos vaticanólogos.

Por outro lado, a história é especialista em preparar armadilhas para aqueles que se acham donos de verdades absolutas. Até os querubins da Capela Sistina se lembram da radical transformação vivenciada por Pio IX (1846-1878). Eleito papa por seu liberalismo, depois das revoluções de 1848 na Europa ele se transformou no baluarte do reacionarismo mais tacanho, declarando guerra à sociedade moderna e incentivando o movimento ultramontano, de rejeição absoluta dos valores do iluminismo. Para coroar sua obra, Pio IX convocou o Concílio Vaticano I, que, entre outras coisas, estabeleceu a infalibilidade papal. Ratzinger, por sua vez, é um conservador esclarecido. Como muitos de seus pares, poderia promover mudanças difíceis de ser levadas a cabo por um liberal. Quem viver verá.