O psiquiatra e psicanalista Cláudio Cohen, 52 anos, é um dos principais especialistas em bioética do País. Professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, ele está acostumado a acompanhar e a pesquisar as mudanças de conceitos e verdades que, de tempos em tempos, são feitas na comunidade científica e na sociedade a partir de novas descobertas. Discussões sobre quando começa e quando termina a vida, por exemplo, fazem parte de seu dia-a-dia. Há quatro meses, no entanto, ele se debruça sobre uma questão bem mais específica, voltada para a compreensão de sua própria atividade profissional. Em conjunto com seus colegas Eduardo Massad e Linamara Battistella, também professores, Cohen coordenou uma pesquisa entre seus pares e outros profissionais de saúde para tentar compreender como eles próprios entendiam a profissão, o paciente e o ambiente no qual trabalham. Eles chegaram a conclusões surpreendentes. Algumas delas: a tecnologia hoje atrai muito mais os jovens estudantes de medicina do que a vocação em si, o doente ainda tem muito medo de falar com o médico e os profissionais não conversam entre si. ?É a primeira vez que fazemos um trabalho deste gênero. Percebia que essa situação existia, mas ninguém dava muita atenção a esses problemas. Então resolvemos falar disso de outra maneira?, conta. Para obter essas conclusões, foram realizadas entrevistas em profundidade com médicos, professores e diretores de hospitais, além de discussões em grupo com recém-formados, residentes, estudantes no final do curso de medicina e outros profissionais de saúde dos níveis superior e médio. A partir dos achados, o professor espera iniciar uma ampla reflexão entre médicos, faculdades e instituições de saúde para tentar acabar com os gargalos que, no fim, prejudicam os profissionais e ? o que é mais perigoso ? também os pacientes.

ISTOÉ – A partir da pesquisa, ficou claro que os estudantes e médicos mais novos entram na carreira seduzidos pela tecnologia e não pela vocação?
Cláudio Cohen

Sim. Mais do que a vocação humanista, o que os atrai é a vocação tecnológica. Em geral, as pessoas estão querendo saber mais de pesquisa. E
hoje os jovens médicos se interessam muito mais em fazer pesquisa científica
do que em tratar pacientes.

ISTOÉ – Isso ocorre em todas as especialidades?
Cláudio Cohen

Há uma contradição interessante detectada no estudo. Os médicos
acham que deveria haver mais clínicos gerais, que eles teriam de manter uma relação mais humanista com o paciente. Mas notamos que, no fundo, o próprio médico acha que o clínico geral é um subproduto da medicina. Eles pensam que,
se ele é clínico, é porque não era muito bom em nada. Hoje, o grande médico é
o hiperespecializado. Então, aquilo que o médico considera como o ideal da profissão na verdade ele próprio não valoriza. E nem a sociedade. As pessoas
não procuram o clínico. É preciso entender que ele é um especialista na sua área
e que se deve começar por ele.

ISTOÉ – O que foi constatado sobre a relação entre médico e paciente hoje?
Cláudio Cohen

O paciente tem medo de dizer as coisas. Acaba contando eventuais problemas para a enfermeira – e ela não repassa as informações ao médico.

ISTOÉ – Quem revelou isso?
Cláudio Cohen

Os enfermeiros, os residentes.

ISTOÉ – Por que ela não conta ao médico o que o paciente está dizendo?
Cláudio Cohen

Esse é um dos grandes problemas da medicina atual, a chamada interdisciplinaridade. Essa palavra traduz a idéia de que a saúde é a soma do trabalho de vários profissionais, e não fruto do domínio e das ações exclusivas do médico. Isso foi estabelecido pela Organização Mundial da Saúde em 1960. Até então, o conceito de saúde era a ausência de doença. Se esse era o modelo – e quem cuidava de doença era o médico –, quem cuidava da saúde era o médico. A partir de 1960, a saúde passou a ser um bem-estar biológico, psicológico e social, isto é, não apenas a ausência de doença. Com isso, o médico virou mais um dos, e não o profissional responsável pela saúde. É o relacionamento entre as disciplinas, a tal da interdisciplinaridade.

ISTOÉ – Mas não há risco de ocorrerem problemas justamente por falta de comunicação?
Cláudio Cohen

Sim, mas a novidade é que hoje não são apenas os médicos que estão sendo processados. Enfermeiros e hospitais também. Está se vendo que não é só o médico o responsável.

ISTOÉ – Por que o doente tem medo de se abrir com o médico?
Cláudio Cohen

Baseado na minha experiência, observo que ele ainda tem uma imagem meio mítica do médico. As pessoas o consideram uma pessoa para a qual só se deve falar as coisas importantes.

ISTOÉ – E que tipo de informação ele deixa de passar? Só problemas, complicações, queixas de dor?
Cláudio Cohen

Não é só isso. Ele também tem medo de perguntar o efeito colateral do remédio ou de dizer que não gostaria de tomar um medicamento. Ainda sobrevive a relação paternalista na qual o médico sabe tudo e o doente não sabe nada. Então, as pessoas acatam tudo o que o profissional fala. A relação ideal deveria ser baseada em uma autonomia dos dois, para que eles discutam. E o médico vai tentar mostrar ao doente por que uma conduta é melhor do que a outra.

ISTOÉ – E que conseqüência tem isso para o paciente?
Cláudio Cohen

Pode haver equívocos. O doente pode ficar com medo de ingerir o remédio, não tomá-lo ou usá-lo na
dose errada. Além disso, tem medo de contar que usa terapias complementares.

ISTOÉ – Mas há uma responsabilidade do médico nisso, não? Muitos se queixam de que ele, de maneira geral, não suporta ser questionado ou mesmo discutir uma dúvida do paciente…
Cláudio Cohen

Nas gerações mais jovens isso está mudando,
mas entre os antigos esta postura prevalece. Por outro
lado, pela obrigação de atender tantos pacientes, o médico não tem tanto tempo para ficar respondendo. É mais ou menos como quando vamos ao banco e queremos investir nosso dinheiro. O gerente nos diz para investir nisso ou naquilo. E não questionamos se ele não acha que outra
coisa seria melhor.

ISTOÉ – O sr. acha que o paciente deve sair dessa situação passiva?
Cláudio Cohen

Não acho, tenho certeza. Ele precisa sair, ser ativo como o médico. Afinal, o que está em jogo é a saúde dele. É o interesse dele próprio. E às vezes ele teme não ser mais atendido por reivindicar seus direitos.

ISTOÉ – Este é um comportamento mais comum entre os pobres, que dependem dos serviços públicos e temem perder a única chance de atendimento, ou também existe entre os mais ricos?
Cláudio Cohen

É um problema cultural, independe das classes. E é um fenômeno brasileiro. Temos pouca noção dos nossos direitos e deveres. Somos um pouco submissos, inclusive como pacientes.

ISTOÉ – Outra descoberta da pesquisa foi a de que o médico prefere falar com o paciente a conversar com os familiares. Por quê?
Cláudio Cohen

O médico tem dificuldade de falar com os familiares do doente. Acha que eles são mais difíceis do que o doente. A família acaba fazendo aquelas perguntas que o paciente não faz.

ISTOÉ – Então, mais uma vez, parente é serpente?
Cláudio Cohen

Sim.

ISTOÉ – Mas os médicos se queixam disso?
Cláudio Cohen

Dizem que preferem falar com o paciente. E que o melhor seria outro profissional lidar com a família. A psicóloga, a assistente social, dependendo do problema que possa estar associado.

ISTOÉ – Mas de novo voltamos à questão. Ele se incomoda com os familiares, mas, se o paciente se queixa, ele fica incomodado…
Cláudio Cohen

Sim, mas o médico tem de aprender a lidar com essa questão.

ISTOÉ – Mas o sr. não acha que ele tem obrigação de falar com a família?
Cláudio Cohen

Sim, mas isso é um passo maior, adiante. Primeiro vamos fazê-lo falar
com o doente e ensinar o paciente a aprender a decidir por si mesmo.

ISTOÉ – Os médicos sabem que perderam parte do status social?
Cláudio Cohen

Os mais antigos não perderam o status. Ainda conseguem ter consultório particular, ganhar bem. Os mais jovens é que perceberão isso de forma mais intensa. Provavelmente não terão consultório particular, trabalharão para uma instituição pública ou para um seguro médico, em que a relação médico-paciente estará influenciada por um terceiro. E isso é uma perda de status. Sua autonomia vai para o espaço.

ISTOÉ – E que prejuízo essa perda de autonomia traz para o paciente?
Cláudio Cohen

Quando ele precisa trabalhar em três, quatro empregos, ele já perdeu autonomia. Já está a serviço dos empregos. E isso vai se refletir na qualidade do atendimento. As vítimas serão o paciente e ele próprio. Mas o profissional ainda não percebeu que também está perdendo. Se tem de trabalhar dessa forma, provavelmente atende muito mais pacientes do que poderia, provavelmente não se atualiza o quanto deveria. Porém, ele ainda acha que é um problema da sociedade e que ela o resolverá. Mas o médico é que terá de dar um basta nisso.

ISTOÉ – O sr. acha que os médicos não perceberam que cabe a eles iniciar essa mudança?
Cláudio Cohen

Cabe a eles também se responsabilizar por isso. A sociedade os culpa pelo mau atendimento. Eles podem até ter parte nisso porque acabam aceitando, porém é o Estado que paga mal, não dá estrutura de trabalho. Há outras responsabilidades. A questão é começar a dividi-las. Estamos olhando para os médicos e dizendo: vocês têm de repensar sua vida.

ISTOÉ – Eles têm de discutir essa situação?
Cláudio Cohen

Sim. Realizar uma reflexão em conjunto. Como não têm tempo de atender o paciente, eles pedem mais exames para ter mais segurança. Isso quebra muito a relação com o doente. Outra coisa: eles sabem que a alocação de recursos para a saúde é muito malfeita. Mas não se questionam sobre essas questões.

ISTOÉ – Eles também são passivos?
Cláudio Cohen

Eles ainda não perceberam a mudança social da função do médico. E também não se imaginam fazendo outra coisa. Isso talvez os assuste e os impeça de exigir mais. Se eu perder isso, o que vou fazer?, podem indagar. Não entendem que essas questões deveriam ser discutidas e revistas com abordagens éticas, com posturas, trocas de valores. No trabalho que fizemos, os médicos disseram gostar da profissão, mas percebemos que entre o gostar e a realidade não há coerência. Basta olhar quantas horas eles trabalham, quantos empregos têm. Se gostassem da profissão como dizem, não a estariam exercendo tão mal.

ISTOÉ – O que esperar do médico no futuro? Ele será mais voltado para a máquina do que para o homem?
Cláudio Cohen

Fico angustiado com tudo isso. Afinal, sou um velho médico. Entrei por uma questão humanista. Considerava este trabalho uma vocação. Acho que, para ajudar a resgatar a missão do médico e lembrá-lo da finalidade básica da medicina, o da assistência ao doente, é preciso haver mais discussão sobre o assunto. Foi o que fizemos aqui na faculdade. Temos disciplinas com conteúdo humanista, psicologia médica, o médico como cidadão, por exemplo.

ISTOÉ – O sr. fala de um modelo implantado na melhor faculdade de medicina do País. Mas e no resto?
Cláudio Cohen

Vamos discutir com todos e trocar idéias sobre esse tema.