20/04/2005 - 10:00
O meia e ponta-esquerda Paulo César Lima, o Caju, foi um dos mais criativos e polêmicos craques do futebol do Brasil. Carioca nascido em uma pequena favela de Botafogo, na zona sul da cidade, última flor da safra do tri de 1970, introdutor do estilo bad boy e das atitudes marqueteiras no esporte, Caju exibiu nos campos um futebol de toques, passadas e finalizações refinadas, que renderam participações em alguns dos mais célebres times montados no País na segunda metade do século XX. Nesta corajosa entrevista a ISTOÉ, Caju, que hoje vive em São Paulo, lembra momentos de glória nos campos brasileiros e franceses e conta todos os detalhes da sua luta para largar a cocaína e o álcool.
Decidi comentar esses fatos numa publicação importante como ISTOÉ por três motivos. Primeiro porque a droga e o álcool, que me atormentaram entre 1984 e 2002, deixaram de fazer parte da minha vida. Dei meu lugar para outro – definitivamente. Depois, porque, como conselheiro do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), viajo o mundo para participar de projetos e acho que posso ajudar pessoas a sair dessas paradas erradas que me prejudicaram tanto. E, por último, acho que a sinceridade é uma maneira de eu ser coerente com os ideais que defendi na vida: igualdade entre negros e brancos, a força do black power, os ídolos da cultura negra, todas essas coisas.
Pois é. No Botafogo, primeira equipe em que joguei e meu time do coração, brigava com o Gerson e o Jair (Jairzinho, o Furacão da Copa de 1970) por causa do cigarro. Sair à noite, para mim, era um meio de descolar uma mulherzinha, mas sem cigarro, droga, cana, maconha, nada.
Eu diria que fui buscar minha vida em vez de pedir licença aos brancos ricos para viver. Estudei o black power e o movimento dos Panteras Negras. Ajudei a divulgar aquelas idéias até no tamanho e na cor do meu cabelo. Frequentava a praia de Ipanema e o Arpoador com pessoas como o jornalista Sandro Moreira, o colunista Ibrahim Sued, o documentarista Carlinhos Niemeyer, do Canal 100, o jornalista e técnico João Saldanha e o produtor Luiz Carlos Barreto, naquela época fotógrafo. Com 21 anos, era o único boleiro aceito nessas rodas de jornalistas, artistas e intelectuais. Importei da Itália um Fiat conversível meio cor-de-abóbora, meio acaju, da cor da porra do meu cabelo. Existe uma foto minha, de cabelo black power, em frente à praia do Leblon, com uma camisa de seda brilhante, meio púrpura. Essa foto tornou-se clássica.
Exatamente. Mas rolava de tudo: loira, morena, ruiva, preta, japonesa… Intuitivamente, fui a primeira mistura de bad boy com produtor de marketing pessoal do futebol brasileiro, muito antes dos Romários, Violas, Túlios e Edmundos.
Sempre foi assim, do aeroporto ao estádio. Em 1970, queriam jogadores paulistas no meu lugar. Nunca liguei. Sempre me achei melhor do que esses caras todos. Depois de 1970, acho que o fato de eu só ter ido jogar por um clube paulista, o Corinthians, no final da carreira e por alguma semanas, também contribuiu. Acho que Romário sofreu um processo parecido depois, porque foi feliz no Rio e na Europa sem ter passado em nenhum momento por São Paulo.
As primeiras experiências foram na França. Tinha 33 para 34 anos e jogava no Ex-en-Provence, um clube da segunda divisão, após uma carreira brilhante, modéstia à parte. Comecei no célebre Botafogo, bicampeão carioca de 1967 e 1968, que naquele tempo rivalizava com o Santos de Pelé. Fui campeão do mundo em 1970, no México, com 21 anos, campeão carioca pelo Flamengo, joguei nas duas máquinas montadas pelo Francisco Horta no Fluminense, em 1975 e 1976. E, no Olympique de Marseille, fui vice-campeão nacional, com 18 gols marcados no campeonato. Tudo conspirava para uma vida agitada. De um lado, eu sempre adorei cultura, gastronomia e vida noturna. Caminhando para o final da carreira nos campos, a possibilidade de curtir esses prazeres em cidades como Marselha e Paris me seduziu. Do outro, fiz amigos reais nos ambientes de cultura, esporte e entretenimento, gente que amava e ama o futebol e criava todas as condições para que isso ocorresse.
Exatamente. Com dinheiro no bolso e oportunidade, comecei a beber aos 33 anos. Você sabe que, na França, a coisa começa com um champanhe no café da manhã. Tinha muitos amigos importantes. O Daniel Hechter, um dos maiores designers de jóias e roupas da segunda metade do século XX, diretor de clubes franceses nas últimas décadas, era o principal deles. Nos anos 1980 e 1990, monsieur Hechter foi parceiro, em produtos, no Brasil, de André de Botton, que transformou a Mesbla na maior rede de lojas de departamentos do País. Até hoje, tenho um quarto à minha disposição na mansão de Daniel em Paris e também na casa de praia, em Saint-Tropez, na Riviera Francesa. Era uma festa: restaurantes e casas de show de graça em Marselha e em Paris, agito em Saint Tropez, iate, lancha, viagens para a casa de Daniel em Bolonha, na Itália, eu com muita grana no bolso. (O ex-tenista francês) Yannick (Noah) é outro amigo querido, quase um irmão. Quando ele venceu o torneio Roland Garros de 1983, numa final contra o sueco Mats Wilander, eu invadi a quadra e o peguei no colo. Essa imagem correu o mundo. Depois, fomos comemorar num cruzeiro. Por seguir a filosofia rastafári, ele fumava muito haxixe, mas era praticamente nulo na cocaína. São apenas dois das dezenas de amigos próximos e influentes que fiz. Nessas festas e encontros de amigos, a cocaína e a birita rolavam soltas.
Verdade. Fui Campeão Mundial Interclubes de 1983, com o Grêmio, em Tóquio, deixei os gramados como profissional e mergulhei nessa bagunça. Fui contratado pelo Daniel, com um belíssimo salário, para viajar pela Europa observando jogadores com potencial para os clubes que ele dirigia. Começava a festa com as biritas do avião. Em solo firme, caía de ponta no pó. Não comprava nada. Daniel me afastou do cargo duas vezes, alegando que eu estava pisando fundo demais, perdendo o controle. Fiquei revoltado, pois tinha a ilusão de que controlava a situação. Essa é a sensação de todo cheirador e de todo bebum crônico.
O barraco desabou mesmo a partir de 1987. Fui adotado aos dez anos pelo ex-técnico Marinho Rodrigues, que já morreu. Considero-o meu pai. Ele sofreu antes de morrer, eu sofri, a mãe que me colocou no mundo, dona Esmeralda, hoje com 84 anos, também sofreu, enfim, todos foram muito consumidos. Era uma coisa terrível. Morava em Copacabana. Levantava cedo e, às nove e meia, dez da manhã, já estava tomando chope na rua Joaquim Nabuco, no Posto Seis. Depois, rumava para a praia de Ipanema, dava uns mergulhos e logo enburacava na batida de maracujá. De tarde, a rapaziada chegava com o produto, a gente ia para o meu apartamento e, aí, era uísque, cerveja, vinho e cheiração de brizola (gíria carioca para cocaína) até o sol raiar. Você perde o controle.
Fiz algumas coisas erradas, quebrei uma ou outra coisa em casa, mas não cheguei a tanto. O lance era mais a arrogância, humilhar as pessoas. No dia seguinte, não me lembrava de nada. Ficava na ponte Paris–Rio. Perdi dois apartamentos lindos na Lagoa Rodrigo de Freitas, um dos pontos mais valorizados do Rio de Janeiro e do Brasil, em incontáveis festas para os amigos, nos momentos em que ficava por aqui. Vivia do aluguel dos meus imóveis, mas, evidentemente, essa renda não dava para bancar a farra toda.
Não. Cheguei a subir morro, mas sempre fui querido. Na favela da Rocinha, um dos líderes era botafoguense, meu fã. O cara mandou fazer uma quadra no topo do morro. Me chamava e eu ia lá, batia uma pelada com os caras.
Com força pessoal. Tenho 55 anos. Larguei o álcool e a cocaína há dois. Dei a vaga para outro – definitivamente. Quase todos os amigos tinham se afastado. O ex-jogador Afonsinho (ex-presidente do Sindicato dos Jogadores do Rio de Janeiro e hoje médico) e o ex-atacante Cláudio Adão foram dos poucos que restaram. Devo parte considerável desta recuperação a Cláudio Adão e a sua mulher, Paula, filha de um amigo, o produtor Luis Carlos Barreto, um dos seis que se juntaram para comprar meu passe do Botafogo para o Flamengo, no início da década de 1970, pelo equivalente a US$ 1 milhão, na maior transação interna do futebol brasileiro até então. A minha querida Paula agigantou-se nesse caso.
Adão me pegava em casa de manhã, depois de uma sessão de remédios que eu tomava. Caminhava comigo na praia ou na Lagoa e, depois, me levava para ficar ao seu lado, na tentativa de garantir que eu não procurasse as companhias de cocaína. A gente lia, via filmes, lembrava de coisas interessantes e ria muito. Nas minhas recaídas pesadas, eu o maltratava. Isso aconteceu muitas vezes, até que ele também não suportou, sumiu e eu, claro, pulei de novo na lama. No início de 2003, um médico amigo realizou em mim uma série de exames. Eu estava com cinco artérias praticamente bloqueadas. Ele chegou e mandou: “Caju, nessa vida que você está levando, um derrame ou um infarto fulminante pode ser questão de tempo. Eu não apostaria em seis meses.” Tinha virado 48 horas na brizola. Vivia como um bunda-mole e brigava com todo mundo por achar que aquilo era bacana. Fui para Ipanema e bati na porta do Adão. Contei a situação e perguntei: “Vocês compram a briga? Ainda estão dispostos a ajudar a me salvar?” Compraram a briga. Daquele dia em diante, limpeza total. Porra, esse papo tá pesado né? Vamos falar de coisas mais leves: futebol, vida boa em casa…
Completo neste abril dois anos de corpo limpão. Perdi mais de 15 quilos. A pele está limpa, brilhando, a disposição voltou. Outra pessoa fundamental nesse processo foi Ana, irmã do Afonsinho, minha mulher nos últimos quatro anos. Moro em São Paulo há um ano e três meses por causa da Ana. Saí dessa, em parte, porque não queria perdê-la. Ela é dentista. Eu trabalho com marketing e projetos relacionados a jovens jogadores na Global Sports, empresa administrada pelo Edinho, filho do Pelé, e por Roberto Yamamoto, um executivo brilhante, cheio de boas idéias, vindo da Petrobras. Tenho carro, mas, pelo menos por enquanto, decidi andar em São Paulo com a Ana, que dirige, de táxi ou mesmo de ônibus. Pego um no Itaim Bibi, vou sentado e desço a duas quadras de casa sem o menor problema.
Seria necessário arrumar um lugar para o Ronaldinho Gaúcho e outro para o Robinho. Mas… não tirando o Gerson e o Caju, tudo moralizado.
Claro. Nas viagens pelo Unicef, volto pela França e fico por lá alguns dias. Aliás, a gente fala da violência em São Paulo e no Rio do Janeiro, mas minha amiga Luana, a Piovani, que está fazendo um curso de teatro na França, contou-me que dias atrás arrombaram e roubaram o apartamento em que ela está, em pleno 7th Arrondissement, na Rive Gauche, em Paris, num domingo. Por aqui, isso nunca aconteceu com ela. Até na minha Paris, meu Deus… De qualquer forma, essa dependência – a França – eu não abandono.