De abril de 2004 a janeiro de 2005, a cidade de Belém (PA) teve o maior surto de infecção hospitalar causado pela bactéria Mycobacterium abscessus de que se tem notícia no País. Foram 111 vítimas, mas a estimativa é de que o número seja maior. Os estragos causados pelo microorganismo deixam marcas no corpo e na alma. A bactéria provoca abcessos purulentos na pele. Além de doloridos, eles prejudicam a auto-estima de pessoas que, de uma hora para outra, têm o corpo todo marcado. Uma delas é a jovem Litiane Modesto, 21 anos. Ela trabalhava como modelo, mas ficou com cicatrizes nos locais das lesões depois de ter sido infectada após uma lipoaspiração, realizada em julho do ano passado. Hoje, a moça desistiu da carreira e já fez seis cirurgias para limpar os ferimentos. “Minhas costas e pernas estão marcadas e sinto fraqueza. Não sei como vou trabalhar”, desabafa.

Os pacientes haviam sido submetidos às mais diversas cirurgias (retirada de vesícula, de tumores de mama e de rim, entre outras). Os procedimentos foram feitos por pelo menos 27 médicos em nove hospitais privados e uma clínica de estética da capital paraense. O que impressiona na história de Belém, além do número de vítimas, é claro, é a enorme quantidade de dúvidas que ainda pairam e a suspeita de que se está diante, novamente, de uma perversa combinação de falta de informação e pouco-caso com o sofrimento alheio. Até hoje, por exemplo, não se sabe como se deu a transmissão da bactéria a tanta gente, em instituições diferentes, todas particulares. “Provavelmente, os estabelecimentos não seguiam as normas de desinfecção e esterilização de forma adequada. Esse microorganismo é eliminado do ambiente hospitalar quando as rotinas corretas são obedecidas”, diz o infectologista Artur Timerman, de São Paulo.

Outra questão intrigante é por que a notícia do surto demorou sete meses para chegar à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Sabe-se que os laboratórios da cidade não identificaram o agente, o que não justifica, porém, o fato de que nenhum dos médicos tenha avisado uma autoridade sanitária de que algo estranho estava acontecendo. “Eventos como esse, causados por agentes desconhecidos, deveriam ser comunicados imediatamente. Mas, infelizmente, não são todos os profissionais que fazem isso”, lamenta Carlos Fortaleza, do Centro de Vigilância Epidemiológica de São Paulo. Segundo ele, três casos de micobactéria em um mês já superam o esperado (cerca de um por ano).O infectologista Lourival Marsola, da Comissão de Controle de Infecções Hospitalares do Hospital Porto Dias, onde ocorreram 19 casos, garante, porém, que informou a Anvisa em outubro (seis meses depois dos primeiros casos).

O fato denuncia a fragilidade da rede de vigilância da cidade. Além disso, não está esclarecida a atuação da Secretaria Municipal de Saúde, que desconhecia o surto até novembro. A secretária de Saúde, empossada em janeiro deste ano, Cleide Fonseca, limita-se a comentar as medidas de contenção do problema implementadas recentemente. “Reforçamos a equipe de inquérito epidemiológico. Mas os relatórios ainda não oferecem muitas conclusões. Seria precipitado dizer que houve falha na vigilância”, afirma.

Dor – A demora na comunicação dos casos trouxe outros prejuízos. De abril a novembro, o surto foi administrado das mais diversas formas e com procedimentos errados. A professora Ivany Ribeiro, 48 anos, por exemplo, sentia dores quando voltou ao consultório do cirurgião Marcelo Dias dez dias depois de ter sido operada de hérnia de hiato no Hospital Saúde da Mulher, em junho. “Ele me disse que poderia ser rejeição aos pontos. As inflamações no abdome viraram caroços. Um deles foi espremido pelo médico com grande sofrimento para mim”, relata. Apenas seis meses depois, o médico pediu um exame para identificar o microorganismo nos abcessos de Ivany. Só então passou a medicá-la com o antibiótico adequado. Dias operou outras seis vítimas. “Opero há 25 anos e não consegui definir o que aconteceu”, afirmou.

Nesta semana, as vítimas poderão finalmente ter um alento. Na quarta-feira 20, o promotor de defesa do consumidor de Belém, Marco Aurélio do Nascimento, entrará com uma ação de reparação de danos contra nove hospitais. Se a sentença for favorável, eles terão de indenizar os pacientes. O promotor tomou conhecimento do caso em março de 2005, quando leu uma carta-denúncia de uma das vítimas, Salomão Benmuyal, publicada pelo jornal O Liberal, e decidiu abrir uma investigação. A carta chamou a atenção de outras vítimas, que se organizaram em um movimento que já reúne 73 infectados. A advogada do grupo, Rosa Souza, filha de um dos pacientes, vai processar os médicos. “Eles foram negligentes”, afirma.

Erros – A pedido da Anvisa, o Conselho Regional de Enfermagem (Coren) fez uma investigação que apontou falhas graves nos processos de desinfecção e esterilização dos aparelhos hospitalares. O relatório afirma, por exemplo, que não se usam roupas adequadas para entrar e sair do centro cirúrgico ou da sala de esterilização, não há manutenção dos equipamentos e faltam profissionais capacitados para supervisionar o cumprimento das normas. O documento mostra ainda que as comissões de controle de infecção hospitalar existem apenas no papel e não enviaram à Vigilância Sanitária da cidade seus relatórios mensais e tampouco um programa de ações de controle de infecções, documento sem o qual os hospitais não poderiam ter a licença sanitária necessária para funcionar. “Diante disso, não se pode dizer que existe controle de infecções hospitalares em Belém”, disse Nascimento a ISTOÉ.

A Anvisa começou a agir. Uma comissão de técnicos foi enviada no final do ano
para investigar o que aconteceu e estabelecer medidas de contenção dos casos. “Estamos fazendo uma ampla investigação nos hospitais e junto aos pacientes”,
diz Flávia Freitas, gerente-geral de Tecnologia e Serviços de Saúde da agência. Outros sete casos foram registrados em Teresina, no Piauí, em período
coincidente com os casos de Belém. “O último teria ocorrido em agosto.
Fomos avisados no mês passado pela Anvisa e começamos a fazer um grande rastreamento”, afirmou a enfermeira Lucimar Lima, coordenadora do Controle de Infecções Hospitalares do Piauí. Um possível parentesco entre as bactérias do
Pará e as do Piauí será esclarecido quando saírem os resultados da análise molecular dos microorganismos.