20/04/2005 - 10:00
Os documentos requisitados pelo procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, para investigar a vida monetária do presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, vão despertar interesse especial quando chegarem ao Ministério Público. O processo que resultou na autuação da Receita Federal sobre a Boston Comercial, ligada ao Banco de Boston no Brasil, revela um eloquente exemplo de como muitas instituições se comportaram em janeiro de 1999, às vésperas da desvalorização cambial, quando bilhões de dólares fugiram para o Exterior. Documentos obtidos por ISTOÉ mostram que o Fisco agiu com base em um contundente parecer de 12 páginas assinado por cinco fiscais do BC. O documento aponta várias irregularidades na tentativa da instituição de remeter US$ 243 milhões (R$ 477 milhões, pelo câmbio da época) ao Exterior, evitando, assim, que a sua matriz tivesse prejuízo com a desvalorização. No parecer, os auditores do BC desmontam a remessa, afirmando que a justificativa cambial escolhida pelo Boston era inconsistente. “Em todas as operações realizadas, há, em tese, elementos que caracterizam ilícitos (…)”, diz o documento. “As contratações de câmbio serviram para outra finalidade que não a declarada”, diz outro trecho do parecer, afirmando que houve “classificação incorreta” das operações de câmbio. Na avaliação dos auditores, a remessa garantiu “excelente resultado” ao Banco de Boston, em contrapartida a um desfalque nas reservas em dólares brasileiras. Por determinação do BC, as operações foram canceladas. Enviado à Receita, o dossiê resultou em uma multa de R$ 110 milhões.
Além da operação, Fonteles quer examinar até que ponto o atual presidente do BC, que na época ocupava o cargo de presidente mundial do BankBoston Corporation (holding do grupo), se envolveu na remessa. A suspeita se deve à informação, também incluída no parecer, de que a matriz do BankBoston nos Estados Unidos participou diretamente da remessa, realizada quando, no Brasil, já se sabia que Gustavo Franco estava demitido do BC e a desvalorização era dada como certa. “Foi confirmado por intermédio de faxes enviados de São Paulo para Boston às 22h42 e 22h43 do dia 12/1/99, data crítica, quando já era pública a notícia de troca do presidente dessa casa”, afirmam os fiscais. O vice-presidente de finanças do Boston no Brasil, Alex Zornig, diz que a instituição discorda do parecer do BC e da multa aplicada pela Receita. Ele afirma que as remessas foram legais e, embora canceladas, não geraram punição ou processo administrativo no BC. O banco está questionando o caso na Justiça. O vice-presidente do Boston confirma que a operação foi exigência da “área de risco” da matriz, mas esclarece que o setor não se reportava a Meirelles e sim a Chad Gifford, presidente do Boston americano, uma das subsidiárias da holding comandada pelo atual presidente do BC. Por intermédio da assessoria, Meirelles diz que não participou da operação.
Fontelles também examinará com lupa outra série de operações identificadas pelo Banco Central realizadas por Meirelles entre setembro de 2000 e outubro de 2002, no total de US$ 2,680 milhões. As remessas se respaldaram em um contrato de prestação de serviços entre Meirelles e a Silvânia Empreendimentos, responsável pela administração dos bens do presidente do BC no Brasil, no período em que ele morou fora. O contrato não despertaria maior atenção, não fosse o fato de a Silvânia pertencer ao próprio presidente do BC. Soa estranho, por exemplo, Meirelles concordar em pagar para si próprio 2% de comissão anual, como prevê o contrato apresentado ao BC, ao qual ISTOÉ teve acesso. Para checar a regularidade do documento, Fonteles pediu ao Fisco as declarações de renda da Silvânia. O procurador-geral quer confirmar se as remessas foram registradas no faturamento da empresa. O presidente do BC, por intermédio da sua assessoria, afirma que tudo foi declarado. As operações caíram na malha fina porque, nos contratos de câmbio, elas foram definidas com imprecisão. Mas o BC considerou, dois meses antes da posse de Meirelles, que os documentos apresentados respaldavam as remessas e arquivou o caso. Nos documentos obtidos por ISTOÉ, não há registro de que o BC tivesse conhecimento de que a Silvânia era do próprio Meirelles. Em meio a esse tiroteio, o presidente do BC ganhou mais algumas semanas para reforçar sua defesa. O STF só decidirá se abre ou não inquérito para investigá-lo depois de julgar a ação que questiona a MP que blindou o cargo de presidente do BC, revestindo-o de status de ministro.