20/04/2005 - 10:00
O 13 de abril pode se tornar o dia mundial da luta contra o racismo no futebol. Nesta data, pela primeira vez na história do esporte mais popular do mundo, um jogador deixa o campo preso por proferir insultos de cunho racial contra um companheiro negro. O fato ocorreu durante a partida entre o São Paulo e o time argentino Quilmes, disputada no estádio do Morumbi, em São Paulo. O jogo era válido pela Taça Libertadores da América, o principal torneio de clubes da América Latina. Após um lance, o zagueiro argentino Leandro Desábato chamou o atacante são-paulino Ednaldo Batista Libânio, o Grafite, de “negrito de mierda”, entre outros xingamentos de coloração imperdoável. O ato foi captado pelas câmeras de tevê e visto em tempo real pelo secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, o são-paulino Saulo de Castro Abreu Filho. Imediatamente ele determinou que Grafite fosse consultado a respeito de uma possível queixa contra o agressor. O jogador aceitou a orientação e o hermano foi parar na carceragem do 34º Distrito Policial da Vila Sônia, a poucos quilômetros do estádio. Ao chegar lá, foi denunciado pelo crime de injúria qualificada por racismo. Esse tipo de indiciamento permite que ele responda à acusação em liberdade, mediante o pagamento da fiança. O preço da liberdade, R$ 10 mil. Como os advogados não depositaram a quantia a tempo, o zagueiro foi obrigado a passar mais uma noite na cadeia. Só que dessa vez nas celas do 13º DP da Casa Verde, zona norte da cidade, para onde foi transferido.
Medidas – O jogo sujo do racismo no futebol é quase tão antigo quanto o esporte. Nas primeiras décadas do século passado, negros eram impedidos de praticá-lo. Quando se imaginava que os tempos eram outros, a discriminação voltou. Nos últimos meses, mensagens e cânticos de orientação racista foram vistos e ouvidos nos estádios dos dois principais centros do futebol: Espanha e Itália. Até mesmo supercraques como Ronaldinho e Roberto Carlos foram vítimas da intolerância. Atemorizada, a família do futebol se mobilizou na direção contrária à barbárie. A Federação Espanhola, a União Européia de Futebol (Uefa) e a Fifa estão punindo clubes que tenham racistas entre seus simpatizantes. O governo espanhol lançou um pacote contendo 31 medidas para coibir ações de grupos que pregam a intolerância. Os jogadores, as principais vítimas do ódio racial, resolveram se unir.
E é justamente nesse contexto que se dá a prisão de Desábato. O fato certamente será usado para que atitudes semelhantes não se repitam. Maior responsável pela prisão do argentino, o secretário de Segurança de São Paulo acredita que o País
foi exemplar no combate à discriminação. “Espero mesmo que seja um exemplo, temos que jogar duro. Agora eles vão pensar duas vezes antes de xingar os jogadores”, diz Abreu Filho. Organizadora da Taça Libertadores da América, a Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) pretende implantar duras medidas. Seu presidente, o paraguaio Nicolas Leoz, estava em São Paulo. Veio receber uma condecoração do governador Geraldo Alckmin. Surpreso, foi ao
34º DP. Na saída, disse que Desábato não jogaria a próxima partida do Quilmes
pela Libertadores. O dirigente afirmou que iria aguardar o relatório do jogo para aplicar uma punição mais severa ao atleta. Além disso, Leoz não descarta incluir
nos regulamentos dos torneios organizados pela entidade rigorosas sanções a clubes, torcedores e jogadores que tenham comportamentos discriminatórios. “Racismo é imperdoável e intolerável.”
Aprovação – A prisão de um jogador argentino por aqui provocou reações apaixonadas dos dois lados da fronteira. Centenas de torcedores foram à porta do 34º DP prestar solidariedade a Grafite e gritar ofensas a Desábato e aos hermanos em geral. Na Argentina, dois dos principais jornais fizeram enquetes a respeito da prisão. O Clarín perguntou a seus leitores, pela internet, se era correto prender o jogador. Computados 11.207 votos até as 18 horas, 61,4% (6.883 votos) disseram que sim e 38,6% (4.324 votos), não. O diário La Nación, por sua vez, perguntou aos leitores de sua edição online se o jogador do Quilmes cometeu ato de discriminação. Dos 4.641 leitores que votaram até o começo da noite da quinta-feira 14, 60,07% disseram sim, contra 39,93% que disseram não. O ex-craque Diego Maradona atestou: “No calor da partida, qualquer coisa pode ser dita.” Para o embaixador argentino no Brasil, Juan Pablo Lohlé, usar o termo “negro”, em seu país, não significa uma ofensa, mas uma forma de intimidade. Esta, inclusive, será a principal estratégia adotada pelos advogados de defesa do jogador. Mas destacou que a maneira como Desábato usou a palavra, associada a palavrões, muda de figura o caso. “Ele deve pedir desculpas. Mas acredito que a situação tenha que ser resolvida em um sentido generoso”, afirmou o embaixador. “Sempre fomos contra as desigualdades e a qualquer tipo de discriminação. Che Guevara era argentino. A vontade de igualdade de nosso povo chega a ser desproporcional à realidade”, declarou. Panos quentes à parte, os xingamentos de Desábato repercutiram no governo brasileiro. Em nota oficial, os ministros Agnelo Queiroz, do Esporte, e Matilde Ribeiro, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República, consideram o incidente “mais um passo na escalada de preconceito e discriminação que vem tomando os estádios de futebol no mundo”.