Entrevista

"Já errei diagnóstico por pensar errado"
Oncologista americano diz que os médicos caem freqüentemente em armadilhas de raciocínio que colocam o paciente em risco

Por Mônica Tarantino
 

i83498.jpgO hematologista e oncologista Jerome Groopman é uma celebridade americana. Querido pelo público, esse renomado professor de medicina da Universidade de Harvard participa com freqüência de programas de televisão, mantém um blog, é colunista da revista The New Yorker e autor de quatro livros de sucesso. Para escrever o mais recente deles, Como os médicos pensam, lançado no Brasil, Groopman leu centenas de estudos e entrevistou colegas de profissão para entender o que os levou a cometer erros na avaliação de seus pacientes. Também baseou-se na sua experiência como paciente – uma odisséia de três anos para chegar ao diagnóstico correto de uma dor crônica e falta de força na mão direita. O resultado é um relato honesto e bem fundamentado das dificuldades dos médicos em descobrir as causas verdadeiras do mal-estar dos seus pacientes. Quem poderia imaginar, por exemplo, que a falta de empatia pode interferir no tratamento desde a primeira consulta? Atualmente envolvido com pesquisas sobre câncer de mama e Aids, Groopman é autor de mais de 150 artigos científicos e também chefia o departamento de medicina experimental do Beth Israel Deaconess Medical Center. De Boston, onde vive, ele concedeu a seguinte entrevista à ISTOÉ:

ISTOÉ – ISTOÉ – Com que freqüência o modo de pensar dos médicos leva a erros no diagnóstico?
Groopman

Jerome Groopman – Cerca de 15% a 20% dos diagnósticos são errados. A maioria deles ocorre porque os médicos continuam caindo em algumas armadilhas do pensamento clínico. Foi isso o que mostrou um estudo sobre diagnósticos equivocados que causaram danos sérios aos pacientes. A pesquisa revelou que 80% dos erros poderiam ser atribuídos a uma seqüência de falhas no modo de o médico pensar. Outro estudo, este sobre 100 diagnósticos errados, mostrou que deficiências no conhecimento médico justificavam os erros em apenas quatro oportunidades.

ISTOÉ – ISTOÉ – Como surgem as armadilhas?
Groopman

Groopman – As mais comuns acontecem em razão de alguns atalhos no raciocínio que usamos quando trabalhamos sob pressão do tempo e condições de incerteza para tratar o paciente. Estudos revelam que os médicos usam o que se chama de pensamento em ação. Quando recebem o paciente, chegam rapidamente a duas ou três hipóteses formuladas a partir de um conjunto de informações muito incompleto. Para fazer isso, eles se valem de atalhos.

ISTOÉ – ISTOÉ – Quais os mais comuns?
Groopman

Groopman – Um deles é o raciocínio pelo qual uma pessoa não avalia múltiplas possibilidades, fixando-se rapidamente em uma delas. O médico olha o quadro geral, mas só vê as referências que espera ver e negligencia as que apontam em outra direção. Um exemplo foi o caso de um guarda florestal que foi ao médico com dores fortes no peito, sugestivas de um infarto. Como o eletrocardiograma, o exame de sangue para avaliar as enzimas cardíacas e o raio X de tórax estavam normais, o médico descartou problemas cardíacos e liberou o paciente. Mas não encontrou explicação para a dor. Dias depois, o guarda infartou. Refletindo sobre o fato, o especialista disse que não considerou a possibilidade de angina (dor no peito que pode anteceder a um infarto) com sintomas atípicos porque estava influenciado pela boa forma e aparência saudável do paciente. Outra armadilha comum é a tendência de avaliar a probabilidade de um acontecimento por causa da facilidade com que exemplos importantes vêm à mente. Por exemplo, depois de uma semana em que atendeu dezenas de pacientes com pneumonia viral em uma comunidade, um médico experiente diagnosticou os sintomas de uma idosa também como pneumonia viral. Internou-a e pediu a um residente que cuidasse dela. O jovem percebeu que, na verdade, a mulher estava intoxicada pelas aspirinas que tinha tomado para controlar um resfriado. O médico deixou de considerar a informação dada pela paciente de que tomou aspirinas e menosprezou alterações nos exames porque não se referiam ao quadro de pneumonia.

ISTOÉ – ISTOÉ – O sr. já cometeu erros de diagnóstico?
Groopman

Groopman – Cometi vários erros sérios ao longo de 30 anos de carreira. Descobri depois porque os pacientes tiveram graves conseqüências. O primeiro foi o de uma mulher que eu diagnostiquei com azia – na realidade, ela tinha um aneurisma de aorta. Mais tarde ela chegou à sala de emergência em estado de choque e morreu.

ISTOÉ – ISTOÉ – Quando foi isso?
Groopman

Groopman – Eu era residente na clínica geral do Massachusetts General Hospital quando ela chegou reclamando de um desconforto no alto do peito. Sem sucesso, tentei descobrir o que poderia estar provocando o sintoma – comida, exercício, tosse – e pedi exames de rotina, como radiografia de tórax e eletrocardiograma. Tudo deu normal e, desesperado, receitei antiácidos. No entanto, ela continuou reclamando e eu parei de escutar porque não conseguia raciocinar clinicamente de forma diferente. Nunca me perdoei. Ainda que a ruptura de aorta freqüentemente seja fatal, ela poderia ter tido uma chance de ser salva.

ISTOÉ – ISTOÉ – E esteve na condição de vítima de um diagnóstico errado?
Groopman

Groopman – Sim. No fim dos anos 90, eu tinha um problema de dor e intumescimento no punho e na mão direitos. Consultei seis médicos e vi que eles podem ter opiniões absolutamente diferentes sobre o que está errado, cometendo o equívoco de não olhar o quadro todo. Ficam focados em uma anormalidade mostrada por exames de imagem, que pode não explicar todos os achados clínicos.

ISTOÉ – ISTOÉ – Qual o desfecho do seu caso?
Groopman

Groopman – Passaram-se três anos até chegar ao diagnóstico e tratamento certos. Houve um momento em que eu já não usava muito a mão direita.

Em vez de escrever, passei a usar um gravador. Na minha busca por um diagnóstico, ouvi muitas explicações inventadas, que soavam científicas. Mas decidi não fazer nada até estar convencido. Aprendi com uma professora da Universidade de Colúmbia, Linda Lewis, que uma vez me disse que "não há na biologia ou na medicina nada tão complicado que, explicado em linguagem clara e simples, não possa ser entendido por qualquer leigo". Só consegui uma resposta depois que um médico ouviu meu relato inteiro dos problemas e acidentes que tinha sofrido, sem me interromper. Ele entendeu o que cada um dos episódios tinha causado e finalmente me deu o tratamento certo.

ISTOÉ – ISTOÉ – No Brasil, a maioria das consultas dura, em média, 15 minutos. Parece suficiente ou é pouco para acertar nas conclusões?
Groopman

Groopman – Não tenho conhecimento bastante sobre o Brasil para dar a você uma resposta inteligente. Mas posso afirmar que nós, médicos, sempre temos pressa. Um estudo mostrou que os médicos interrompem os seus pacientes cerca de 18 segundos depois que eles começam a contar sua história. Nestas situações, o profissional se fixa na primeira informação que ouve e pode falhar na percepção de pistas que viriam mais tarde, se o paciente não fosse interrompido.

ISTOÉ – ISTOÉ – Uma pesquisa de seu livro diz que os médicos gostam menos dos pacientes doentes e preferem os saudáveis. Não deveria ser ao contrário?
Groopman

Groopman – Médicos gostam de ter sucesso no que fazem, como todos. Algumas vezes interpretamos de modo inconsciente doenças graves como uma falha, uma incapacidade de ter êxito, e retroagimos em relação a esses pacientes, mesmo sabendo que até os melhores médicos poderiam não ter sucesso na sua cura.

ISTOÉ – ISTOÉ – A indústria farmacêutica influencia as decisões dos médicos?
Groopman

Groopman – O alcance do marketing dessas companhias é muito potente em plantar na mente dos doutores tanto o quadro de uma doença como os tratamentos a serem recomendados.

Por exemplo, aspectos naturais do envelhecimento são mentirosamente transformados em doenças. Devemos ficar alertas quanto a isso. Também devo dizer que hoje a medicina não está separada do dinheiro. Muito poucos médicos se prostituem em busca do lucro, mas somos suscetíveis aos esforços sutis, ou não tão sutis, da indústria farmacêutica para modelar nosso raciocínio. Por outro lado, essa indústria é fundamental. Sem ela, haveria menos tratamentos

ISTOÉ – ISTOÉ – O sr. disse que alguns médicos fazem diagnósticos como se fossem computadores, presos a esquemas. Por que isso o incomoda?
Groopman

Groopman – Fixar-se a um roteiro linear também é uma atitude que pode desviar o especialista do caminho do diagnóstico correto. Nas escolas de medicina, os jovens têm aprendido a seguir um roteiro de avaliação formulando suas hipóteses baseados em evidências estatísticas. São ensinados a trabalhar com um paradigma matemático, quando, na prática, o exame físico começa com a impressão visual do paciente e com a resposta física obtida ao apertar a mão da pessoa.

Quem fica preso aos modelos deixa escapar aspectos discretos, importantes para a avaliação. Os padrões são baseados em pacientes com manifestações clássicas das enfermidades, mas sabemos que todos os indivíduos são diferentes e muitas doenças podem não ter apresentações típicas.

ISTOÉ – ISTOÉ – O que os médicos podem fazer para evitar essas armadilhas?
Groopman

Groopman – Além da nossa formação e treinamento, como médicos deveríamos reconhecer que a mente humana está conectada à utilização de certos atalhos, especialmente quando trabalha sob pressão. Ao estudar e conhecer esses atalhos, podemos pensar sobre o nosso raciocínio clínico e fazer a nós mesmos algumas perguntas para nos proteger deles. Uma delas é se não existe uma outra hipótese para explicar aquele conjunto de sintomas, se há resultados nos exames que não se encaixam com o diagnóstico e se faltou investigar algo.

ISTOÉ – ISTOÉ – Como o paciente pode ter papel mais ativo no atendimento e se proteger dos equívocos nos diagnósticos?
Groopman

Groopman – O paciente deve se sentir confortável para pedir ao médico que explique o raciocínio adotado para chegar à conclusão que está apresentando e perguntar, por exemplo, quais as outras possibilidades que podem ser consideradas quando os sintomas ainda persistirem. No final do meu livro, há uma série de questões apropriadas a fazer: O que mais o meu quadro pode ser? Podem estar acontecendo duas coisas ao mesmo tempo para causar o meu problema? Existe alguma coisa na minha história e nos exames clínicos ou de imagem que não combina com o diagnóstico?