13/04/2005 - 10:00
Apenas neste ano dom Cláudio Hummes foi três vezes a Roma. Os dois primeiros embarques foram uma tranquilidade. O terceiro, no aeroporto de Cumbica, em Guarulhos, na terça-feira 5, ocorreu entre holofotes e atropelo de jornalistas. Dessa feita, dom Cláudio viajou como um dos 117 cardeais convocados para eleger o novo papa. Mais do que isso, viajou na condição de papabile, visto que, segundo especialistas em Vaticano, ele tem chances concretas de ser o sucessor de João Paulo II. Em Cumbica, assim que se liberou do tumulto, dom Cláudio se despediu de um pequeno grupo de auxiliares, numa sala reservada da Varig. Os olhos azuis de Ruth Maria de Carvalho, funcionária da Cúria paulistana há duas décadas, cintilavam quando ela disse adeus ao cardeal.
– Nem sei se desejo que o sr. volte – disse Ruth, com a voz embargada.
– Está nas mãos do Espírito Santo – respondeu, sereno, dom Cláudio.
Caso seja o eleito, dom Cláudio não volta para casa. Papa não tem de esvaziar gavetas antes de assumir o trono de São Pedro. Em Roma, porém, ele desembarcou apagando incêndio. As labaredas foram provocadas por declaração de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não era “católico, mas caótico”, feita pelo arcebispo do Rio de Janeiro, dom Eusébio Scheid. “Lula tem comungado mais vezes comigo, sobretudo no dia 1º de maio”, ponderou dom Cláudio. “Para mim, ele é tão católico como todos os outros católicos do Brasil.”
As diferenças entre dom Cláudio e os outros cardeais brasileiros que participam do conclave – dom Eugênio Scheid, dom José Freire Falcão e dom Geraldo Majella – não se limitaram ao imbróglio com o arcebispo do Rio. Ao contrário dos colegas, dom Cláudio foi recebido no aeroporto de Fiumicino com honras de chefe de Estado. Aos 70 anos, dono de uma postura hierática, ele adota comportamento quase majestático em relação às questões sacras, mas não está habituado a tamanha exposição pública. A exceção foi o período das greves históricas do ABC paulista, nos anos 80, quando sua figura esguia
se destacava, cerrando fileiras com
os metalúrgicos, indiferente à repressão do regime militar.
Naqueles tempos conturbados, o bispo dom Cláudio não hesitava em pregar o direito de liberdade de manifestação nas assembléias gigantes no estádio de Vila Euclides. Não deixou de celebrar a missa de 1º de Maio nem em 1980, quando Lula e outros líderes sindicais estavam presos e a Igreja Matriz, cercada pela Polícia Militar. Na mesma época, mandou abrir as igrejas da diocese que comandou entre 1975 e 1996 para que os trabalhadores se reunissem. “Quando estive sob ameaça de sequestro, em 1983, fui levado para o salão paroquial de uma igreja”, conta o deputado federal Vicente Paulo da Silva (PT), o Vicentinho. “Só depois soube que fora uma determinação de dom Cláudio.”
Nomeado arcebispo em 1996, dom Cláudio começou em Fortaleza uma fase marcada pelo retraimento. Dois anos depois, foi indicado arcebispo de São Paulo pelo Vaticano, em substituição a dom Paulo Evaristo Arns, figura de destaque da esquerda eclesiástica. Nove anos antes, a diocese havia sido desmembrada em cinco, numa reação do Vaticano à Teologia da Libertação. O enquadramento também atingira a diocese do Recife e de Olinda. Em Pernambuco, o conservador dom José Cardoso passara a ocupar o lugar de outro ícone da esquerda católica, dom Hélder Câmara. Embora considere dom Cláudio conservador no que diz respeito aos dogmas da Igreja, o teólogo Fernando Altemeyer lembra que o atual arcebispo de São Paulo tem sido incisivo nas questões sociais, como na defesa dos moradores de rua e na crítica à política neoliberal. “Além disso, ele não destruiu nada da obra de dom Paulo, ao contrário do arcebispo do Recife, que em dois anos destruiu o que dom Hélder havia construído em duas décadas”, compara Altemeyer.
Defensor de uma Igreja pós-moderna, que acompanhe a reação da sociedade
ao excesso de racionalismo e abra espaço para o sentimento, o arcebispo de São Paulo tem simpatia pelos carismáticos e acredita que é preciso ampliar as ferramentas para aproximar a Igreja do povo. “Ele aposta no marketing como alternativa para fazer com que o sacramento chegue ao coração do público”,
diz o consultor Antonio Miguel Kater Filho, fundador do Instituto Brasileiro de Marketing Católico. Católico devoto, Kater Filho pregava em um retiro de jovens,
na década de 80, em Santo André, quando foi surpreendido pela visita do então bispo. Tornaram-se amigos.
O arcebispo de São Paulo, no entanto, é um homem reservado, que poucos conhecem a fundo. Depois que seu nome começou a aparecer como papabile em publicações de todo o mundo, a demanda por informações sobre seu pensamento ficou tamanha que a Editora Paulus antecipou para este domingo 10 o lançamento do livro Diálogo com a cidade, com 110 artigos publicados pelo religioso no jornal O Estado de S.Paulo. “A edição seria originalmente lançada em maio, quando ele completa sete anos em São Paulo”, comenta o padre Paulo Bazaglia, diretor editorial da Paulus. Pela mesma editora, dom Cláudio publicara em 2002 a obra Sempre discípulo de Cristo, com as 22 palestras do retiro espiritual que coordenou, para o papa e a Cúria Romana, na Quaresma de 2001. Poucas semanas antes, havia sido sagrado cardeal.
Doutor em filosofia, dom Cláudio percorreu uma longa trajetória até o seu último e pomposo desembarque em Roma. Neto de imigrantes alemães que se radicaram no Rio Grande do Sul para trabalhar na agricultura, ele nasceu na cidade de Montenegro. Terceiro filho de uma família com 14 irmãos, até os seis anos só falava alemão. Hoje, domina outros quatro idiomas e integra dez organismos da Cúria Romana, razão de suas constantes viagens à Itália. Em São Paulo, leva uma rotina franciscana no sobrado ocupado outrora por dom Paulo. Levanta-se às 5h45 e, antes do café da manhã, vai para a sua capela particular, onde reza a missa, em geral na companhia das irmãs Verônica, Nazaré e Jorgecy, da Congregação Servas do Senhor, que vieram de Botucatu (SP) para trabalhar com ele. Conta ainda com a ajuda da secretária Maria Lúcia, do motorista Raimundo Nonato e do jardineiro José dos Santos, que cultiva a horta orgânica que abastece sua mesa. “Ele é humilde no tratamento e ponderado à mesa”, conta a irmã Verônica. “Preparamos refeições simples, que ele sempre aprecia.” Como entrada, dom Cláudio tem preferência por um caldo de soja, cuja receita trouxe de Santo André. Mas só Deus sabe se essa sua ponderação se manterá diante das altas esferas de poder na Igreja Católica.