ATITUDE
A atriz Audrey Tautou no filme "Coco Antes de Chanel". Ela interpreta a estilista que rompeu com as vestimentas pesadas e se tornou um ícone francês no início do século XX

Um típico baile chique da belle époque francesa ocupa uma passagem reveladora do filme "Coco Antes de Chanel" que estréia na sexta-feira 30, aguardada produção sobre a vida da famosa estilista francesa Gabrielle Chanel – vai de sua infância interiorana até a consagração em Paris. Estamos no início do século XX e as mulheres aparecem todas de branco, envoltas em frufrus, golas altas e cinturas marcadas pelo sufocante espartilho. E eis que surge Coco Chanel (nesse momento ainda uma cortesã vivendo às custas do rico oficial da infantaria e criador de cavalos Étienne Balsan) enfiada em um vestido preto, de decote generoso e corte tão simples que lhe permite os mais leves e graciosos volteios.

A diretora francesa Anne Fontane, de "A Garota de Mônaco", não é ainda dona de uma assinatura marcante, mas sabe pontuar uma biografia: corta logo para a juventude de Chanel, que divide com a tia um número de variedades em um café freqüentado por militares: é quando ela conhece Balsan (Benoît Poelvoorde) e ganha o apelido de Coco, tirado do refrão da música "Qui Qu’a Vu Coco", do seu repertório de corista. Não se trata ainda de uma paixão, que virá quando Chanel, já morando na casa de campo de Balsan, conhece o seu amigo inglês Boy (Alessandro Nivola), também amante do turfe e do polo.

AMAZONA Audrey e Nivola jogam polo. Na vida real, foi nessa ocasião que Chanel se apropriou do vestuário masculino

Introduzida nas altas rodas, Chanel tem o seu primeiro golpe amoroso: Boy está na verdade comprometido com um rica jovem inglesa. Decide então não pensar mais em formar família. Se alguém a trata como madame, a correção vem com o movimento dos dedos: "mademoiselle, s’il vous plâit". Mais do que a condição de solitária, ela descobre que a única forma de se libertar de sua origem humilde (e de mulher dependente) seria pelo trabalho. Surge então a costureira, a genial criadora de chapéus – com a ajuda do amante, claro, que lhe empresta o dinheiro, mas já com um tino incrível para os negócios. O resto é história, devidamente carimbada com o símbolo dos dois Cs dourados e enlaçados.

Muita gente tem criticado o filme pelo fato de ele se dedicar apenas aos anos "Coco" de Chanel. Seria uma forma de se evitar uma verdadeira saia justa: o colaboracionismo de estilista, que durante a ocupação teve um romance com um oficial nazista. Nessa época ela morava numa suíte do exclusivíssimo Hotel Ritz, que ficou conhecida, claro, como a Suíte Chanel. Outros críticos apontam um lado de puro marketing, já que Audrey Tatou é o novo rosto do comercial do perfume Chanel nº 5. Já contando com essas ressalvas, um outro filme sobre a estilista chega no vácuo. Trata-se de "Coco Chanel e Igor Stravinsky", sobre a paixão do autor de "A Sagração da Primavera" pela estilista, produção que faz parte da programação da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em cartaz até o dia 5 de novembro. Mais uma vez, seu elegante feminismo dá o tom.

E nasce o pretinho básico

Para criar um vestido de baile, para uso próprio, Chanel pede ao vendedor um tecido preto. Ele aconselha: temos cores mais femininas. Ela responde: o preto valoriza a cor dos olhos. Sua biógrafa Edmonde Roux define a determinação: "Ela desafiou o maior costureiro de sua época roubando suas clientes uma a uma e alistando-as de imediato no pelotão de mulheres que, sob suas ordens, desistiram dos penachos, dos cabelos longos e das saias entravadas, afuniladas no tornozelo". Chanel comparava os chapéus enfeitados a merengues: "não admira que as mulheres que os usem não pensem".

Nos braços de seu amante, o sedutor inglês Arthur "Boy" Capel (Balsan havia lhe "emprestado" a moça por dois dias), Coco Chanel faz ao parceiro o comentário mundano: "As mulheres não tiram os olhos de você". Ao que Boy responde: "Não é verdade. Elas não tiram os olhos é de você". Os fashionistas situam facilmente essa cena na trajetória de Chanel, o grande ícone da alta costura em todos os tempos: trata-se da gênese do chamado "pretinho básico", ou seja, o vestido de crepe preto, feito de um tecido e numa cor não indicados para trajes de gala femininos. De outro lado, mesmo sob essas frivolidades há de ser reconhecer aí a gestação de uma nova mulher: aquela que transforma seu corpo e a maneira de adorná-lo numa atitude, quase uma afronta. Ou seja: Uma feminista antes que a palavra existisse.

FIGURINO A produção usou modelos verdadeiros da estilista na cena final. À esquerda, Audrey finaliza um vestido na já famosa Maison Chanel

Coco Chanel é vivida no filme por Audrey Tautou, cuja estampa suave serviu tão bem à personagem quanto Marion Cottilard o foi para a cantora Edith Piaf, outro ícone francês que o cinema rendeu tributo recentemente. Mas não se deve ir às salas de exibição com o mesma expectativa de catarse. Chanel nunca foi dada aos exageros – nem mesmo no amor. Frasista brilhante ("as modas passam e o estilo permanece", é uma de suas máximas exemplares), a estilista que se vê em "Coco antes de Chanel" ainda não se mostra em pleno domínio da ironia. Ainda não é a mulher que imobilizava centenas de empregados "dependendo do movimento de seus dedos", como diz Edmonde CharlesRoux no livro "A Era Chanel" (Cosac Naif). O sofrimento não lhe era um sentimento desconhecido. Filha de camponeses pobres, ela foi entregue a um orfanato depois da morte de sua mãe e passou a infância esperando a visita do pai, que nunca deu as caras.