Nas ruas de Cabul, as pessoas dizem que o Taleban encobria a cidade como uma nuvem negra. Aproveitando a mesma metáfora climática, é possível comparar a investida das forças de oposição da Aliança do Norte com um raio. O regime ultrafundamentalista islâmico, que dominava a capital e cerca de 90% do Afeganistão há cinco anos, foi pulverizado em menos de uma semana. A desintegração do Taleban foi tão completa e fulminante que já é vista como prenúncio de tempestade no futuro político do país. A ameaça é de que as rivalidades tribalistas perpetuem a guerra civil e a anarquia do vácuo no poder. Os estrategistas do Pentágono, que semanas antes estavam sitiados por críticos de sua tática de bombardeios feitos a partir de grandes altitudes, mal tiveram tempo de celebrar a vitória na mudança de tática com ataques mais focados nas linhas de defesa do inimigo. Washington voltou às planilhas, correndo para elaborar os difíceis passos no campo minado da política feudal afegã.

De qualquer modo, a primeira etapa da guerra foi vencida de forma espetacular. Mais uma vez, a vitória veio do ar, com os bombardeiros americanos abrindo o caminho para a infantaria da Aliança do Norte. Descobriria-se depois que os mísseis não só limparam o terreno, mas também pavimentaram as vias que levariam a Aliança com rapidez exagerada às cidades do Taleban. No dia 9 de novembro, a importante região de Mazar-i-Sharif, ao norte, caiu depois de pouca resistência daqueles que prometiam lutar até a morte. Cumpriram-se apenas 50% do prometido: os soldados do governo morreram, mas sem muita batalha. Foram, na verdade, executados pelas tropas do comandante Rashid Dostum, conhecido como “O Carniceiro do Norte”, que retomaram seu antigo feudo perdido anos antes para os talebans. Numa escola estavam acuados 900 militantes paquistaneses que atenderam recentemente ao apelo do Taleban pela guerra santa contra as forças americanas, inglesas e aliados afegãos. Somente 140 saíram vivos do local. Na terça-feira 13, os homens de Burhannuddin Rabbani, o presidente deposto pelo Taleban, mandaram às favas o pedido de Washington para não tomar a capital de imediato e invadiram Cabul. Dois dias depois, a “nuvem negra” taleban encobria apenas as cidades de Kunduz e Kandahar, o QG do regime, prestes a cair nas mãos da Aliança.

Em Cabul, depois da liberação, os apetrechos que tiveram maior utilização foram as lâminas afiadas. Tanto para raspar as barbas, que o regime considerava obrigatórias aos homens que saíssem da adolescência, quanto para rasgar a garganta de quem esteve no poder e foi incapaz de correr com a rapidez necessária naquele dia 13. Segundo a Organização das Nações Unidas, mais de mil pessoas foram executadas sumariamente. Ainda assim, num país que há 20 anos faz da guerra seu cotidiano, esta teria sido a invasão menos sangrenta da capital. Talvez o segundo artigo mais procurado na cidade tenha sido o rádio. Proibida de ouvir música há cinco anos, a população transformou o lugar no maior arrasta-pé de que se tem notícias no norte da Passagem de Khyber.

Enquanto se dançava nas ruas da capital, um minueto diplomático era coreografado em Kandahar. O objetivo era chamar para a festa representantes da etnia pashtun, maioria no país e de onde saiu o Taleban. O convite, porém, não estava sendo aceito de bom-grado. Hamid Karzai, líder da tribo ghilzai, um ramo pashtun, recomendava que a Aliança do Norte não se atrevesse a tentar entrar em Kandahar. Avisava que seus homens estavam entrando em acordo com a liderança do Taleban para que houvesse uma rendição sem derramamento de sangue, mas que a cidade teria de continuar sob o domínio pashtun e fora da esfera de influência da Aliança. “O problema é que esta aliança é composta por uma malha de etnias diferentes: tadjiques, hazaras, uzbeques e outras menores. Os pashtuns não vão aceitar um governo composto só por estes rivais”, diz o professor Robert Fenton, especialista em Afeganistão da Universidade da Cidade de Nova York.

O impasse em Kandahar, que poderia ser quebrado à bala, também ocupava o tempo do governo George W. Bush. Os Estados Unidos alertavam discretamente que seus aviões poderiam apontar os mísseis para outros alvos além do Taleban. “Já deixamos claro para todas as lideranças da oposição que não vamos aceitar imposições de uma só facção. O governo provisório do país, com duração prevista para cerca de dois anos, deve ter a figura do ex-rei Mohammed Zahir Shah como o unificador de um governo de coalizão no qual não faltarão nem os pashtuns nem outra etnia qualquer. Os que discordarem devem sofrer a represália do restante do país e, possivelmente, dos Estados Unidos”, disse a ISTOÉ uma fonte do Departamento de Estado. O ex-rei Shah, deposto em 1973 e vivendo em Roma, serviria apenas como uma espécie de fiel no difícil equilíbrio da balança do poder afegão. O monarca, não por acaso, faz parte da etnia pashtun. O representante especial da ONU para o Afeganistão, Lakhdar Brahimi, tenta juntar nas próximas semanas todas as lideranças do país numa Loya Jirga, o conselho tradicional afegão, no território neutro dos Emirados Árabes. Espera-se que desta assembléia surja um esboço da composição do novo governo.

Quem certamente não estará na Loya Jirga será o mulá Mohammad Omar – líder máximo do Taleban. Por dois motivos: em primeiro lugar porque ninguém quer o ex-regime representado; e, em segundo, porque Omar já está no mundo da lua. Numa entrevista que deu à rádio inglesa BBC, o mulá disse que suas tropas estavam apenas se agregando, num lance estratégico, e sua luta visava um objetivo maior: “a destruição da América, que, com a ajuda de Deus, virá muito em breve”, disse.

Mas o que realmente provocou um calafrio na espinha americana foram os papéis encontrados numa base da al-Qaeda, abandonada depois de bombardeada. Os comandos de elite Ranger conseguiram recuperar planos para a montagem de bombas atômicas e outros artefatos nucleares. Mesmo chamuscados, estes documentos – escritos em russo, alemão, paquistanês, pashtun ou inglês – demonstram que a organização terrorista estava no caminho de se tornar uma mini-potência nuclear. Fontes dos serviços de inteligência americanos confidenciaram a ISTOÉ que três sofisticados laboratórios capazes de preparar armas bioquímicas foram comprados recentemente por uma empresa pertencente à al-Qaeda. De fabricação ucraniana, os laboratórios foram para os Emirados Árabes e de lá para o Afeganistão. “Estavam em pleno funcionamento numa base perto de Kandahar, até o começo de setembro. Naquele mês, antes do dia 11, vários caminhões foram vistos transportando equipamentos para fora das cavernas da base. Provavelmente, estavam sendo transferidos para outro local considerado mais seguro”, disse a fonte de ISTOÉ.

Onde quer que os laboratórios estejam, na certa correm o mesmo risco que seu dono de serem descobertos. Com a maioria do país nas mãos da Aliança do Norte, tropas de elite americanas estão passando pente fino no território afegão em busca de Osama Bin Laden. Os comandos fazem bloqueios de estrada, atacam comboios, vasculham cavernas. “É só uma questão de tempo para acharmos Osama e a liderança da al-Qaeda”, diz o secretário de Defesa, Donald Rumsfeld. Mas ele não descarta a idéia de que o saudita e seu bando tenham escapulido do país. “Nós não podemos controlar todo o tráfego de helicópteros. Alguns aparelhos restaram para o Taleban, e Osama pode ter usado um deles para ir ao Paquistão. De lá, ele pode pegar seu avião e fugir. Mas esta não será uma fuga eterna: onde quer que ele vá, nós estaremos em seu rastro”, diz Rumsfeld.

SEDE DE SANGUE

Os massacres que os milicianos da Aliança do Norte estão impingindo a membros do Taleban constituem uma sinistra rotina no Afeganistão. Entre 1992 e 1996, antes de os seguidores do mulá Mohammad Omar tomarem o poder, todas as forças e etnias que lutaram contra a ocupação soviética se engalfinharam em carnificinas mútuas. Em 1997, soldados uzbeques do general Rachid Dostum torturaram barbaramente e assassinaram cerca de dois mil civis e prisioneiros talebans (pashtuns) em Mazar-i-Sharif, cidade que abriga a tumba de Ali – genro do profeta Maomé, fundador do xiismo. Descendentes do sanguinário conquistador mongol Gengis Khan (1160-1227), os uzbeques são considerados os mais violentos guerreiros da Ásia Central. Mas a guerra civil afegã mostrou que todas as etnias têm sede de sangue.