Conta a lenda indígena que no início era o nada. Os deuses da sabedoria esconderam todas as belezas da natureza e aguardaram. Quando a escuridão foi interrompida pela criação do Sol e da Lua, eles resolveram então mostrá-la ao homem, com toda a sua exuberância e vida. Muitas luas se passaram e, assim como a natureza, o pensamento indígena se transformou em advertência: “Só depois que a última árvore for derrubada, o último peixe for morto, o último rio, envenenado, vocês vão perceber que dinheiro não se come.” Pautado por essa sentença, de autoria desconhecida, o governo do Mato Grosso, ironicamente um dos Estados amazônicos campeões de desmatamento, criou e pôs em prática um sistema inovador capaz de fiscalizar a devastação e as queimadas ilegais. A idéia é simples e auto-sustentável. A cobertura vegetal do Estado – Pantanal (7,04%), Cerrado (40,80%) e Floresta (52,16%) – é mapeada a partir de imagens de satélite. Através delas, os técnicos da Fundação do Meio Ambiente (Fema) gerenciam dados sobre as atividades rurais do Mato Grosso, o segundo maior produtor de grãos do País, e mapeiam o desflorestamento e as agressões ao meio ambiente.

Compatibilizar a vocação agrícola do Estado e seu crescimento com a preservação dos recursos naturais é difícil, mas não impossível. Convencer os fazendeiros a deixar o mato crescer em paz, como pregou o maestro Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim em Borzeguim não é tarefa fácil. A Marcha para o Oeste, iniciada em 1938 por Getúlio Vargas, desencadeou uma cultura de custo elevado e significativo na relação do homem com o meio ambiente. De 1970 até 1999, Mato Grosso foi devastado numa área equivalente à do Estado de São Paulo, 25,8 milhões de hectares. Desse total, metade foi ilegal, e 16% dele (4,2 milhões de hectares) nada produzem. O secretário de Meio Ambiente, Frederico Guilherme Muller, entusiasma-se quando fala do modelo de controle, aprovado pelo Ministério do Meio Ambiente, que decidiu aplicar a mesma metodologia nos Estados amazônicos, principalmente nos que estão na fronteira da expansão agrícola.

Mas não é só de Brasil que vive o secretário. Convidado pelo Banco Mundial, um dos financiadores da idéia, levou o sistema de controle adotado no Estado para apresentá-lo, em conferência na Indonésia, como alternativa de preservação às florestas tropicais no continente asiático. Frederico Muller chama a atenção para a necessidade de políticas públicas que tragam tecnologia para a agropecuária. Com isso, será possível o aumento de produção com menos área e, consequentemente, necessidade de desmatamento. O chute inicial para o sistema de geoprocessamento começou no fim de 1999, quando o Mato Grosso assinou um pacto federativo com o governo federal assumindo as atividades de controle ambiental. O Estado – que tem 72 áreas indígenas e 28 unidades de conservação – passou a exigir dos proprietários rurais licença ambiental para atividade ou projeto agropecuário. Para obter o documento, o fazendeiro apresenta a localização de sua terra e o projeto a ser desenvolvido, geoprocessado numa foto feita por satélite. A área de exploração, a reserva legal, as áreas de preservação – 80% para floresta e 35% para cerrado – e de preservação permanente, como as matas à margem de cursos d’água, têm que estar delimitadas. Essas imagens são lançadas na base de dados da Fema e o órgão as atualiza anualmente. Comparando as imagens no computador, os técnicos conseguem saber se o produtor está ou não andando na linha.

Flagrantes – Foi dessa forma que a equipe da Fema descobriu, no dia 30 de outubro, que a Fazenda Indaiá, no município de Santo Antônio de Leverger, estava fora do riscado. A superposição de imagens feitas por satélite antes e depois da licença apontou prática de crime ambiental, apesar de o engenheiro responsável pelo projeto, Denizar Novaes da Rocha, informar em seu laudo que o desmatamento foi “concluído conforme orientação técnica”. A Fema acionou três fiscais, sendo dois engenheiros, que seguiram de caminhonete e de helicóptero, munidos de GPS, o que possibilitou a rápida localização da fazenda e a vistoria. O comerciante Antônio Carlos Campo, dono da Indaiá e de três concessionárias de motocicletas Honda, entrou na Fema com um pedido de desmatamento para pasto. Ele foi autorizado a desbastar 990 hectares de cerrado. No entanto, teria que manter absolutamente intactos 612,46 hectares de reserva permanente e 146,72 hectares de área remanescente, passível de desmatamento futuro. A notificação da infração foi recebida pelo capataz Valter Santos, o Poconé. Entre um café e outro, Poconé contou sobre o desmatamento da fazenda com a mesma inocência que falou sobre a visita, toda manhã, de papagaios e araras-azuis, espécie em extinção, aos pés de caju plantados próximo à casa em que vive. Poconé, um “borzeguim mandado”, não entende por que o desmatamento a corte raso de mais de 2,5 mil hectares, calculado por computador através de imagem de satélite, está causando tanto rebuliço. Aos poucos, os fiscais vão explicando a importância da preservação ambiental e do cumprimento da lei. Caso contrário, em menos de 60 anos não haverá mais floresta e cerrado em Mato Grosso, conforme calculou o secretário de Meio Ambiente, Frederico Muller. Ao conversar com ISTOÉ, Antônio Carlos enviou por fax autorização do Ibama-MT para o desmatamento. Nesse documento, a área da fazenda é maior do que a informada à Fema, e o órgão federal autorizou de fato o desmatamento de 700 hectares e a limpeza – “retirada de árvores indevidas” – de uma área, que “já seria de pastagem”, de dois mil hectares.

Para o diretor de Recursos de Fauna e Flora da Fema, Paulo Leite, as autorizações são fornecidas através de imagens e “o Ibama, baseado em papel e trabalho em campo, que tem imprecisões. As imagens que tenho sobre a Indaiá são claras, aquilo não é limpeza, é desmate, corte raso. E mais: ele não poderia ter entrado com um processo aqui e outro lá. Desde 1999, quem tem que fornecer essas licenças é o Estado, não o Ibama”. Paulo aposta que as discrepâncias entre o Instituto e a Fema são apenas metodológicas e tecnológicas. Talvez isso explique por que o órgão federal no Estado permitiu que 14 mil metros cúbicos de madeira fossem retirados de duas áreas estaduais protegidas por lei. Ou por que autorizou um fazendeiro em Veras a desmatar três mil hectares de uma propriedade de quatro mil, desrespeitando a lei ambiental. “Embargamos o desmatamento quando ele já havia desbastado dois mil hectares em um local de floresta. Pela lei, o máximo que ele podia desmatar era 999 hectares. Acima de mil, tem que existir estudo de impacto ambiental, que custa em média R$ 100 mil, audiência pública e outras medidas”, ressalta Paulo.

Desafio – O governador Dante de Oliveira sabia que enfrentaria resistência ao implantar o projeto que recebeu cerca de R$ 5 milhões de doações do Programa de Proteção de Florestas Tropicais PPG7, do Banco Mundial e do governo do Estado para montar e treinar pessoal. “O preço dessa política foi determinação e firmeza porque mexe com uma cultura que ainda prevalece em uma parte do empresariado brasileiro: a de que se dane o futuro. O fato é que a dinâmica de desmatamento no Estado está sendo reduzida e ao mesmo tempo há um acréscimo do PIB anual da ordem de 7%. Isso prova que é possível o desenvolvimento sustentável.” Até 2002, a Fema pretende estar com cerca de dez mil propriedades rurais monitoradas, o que representa 70% do Estado. Hoje cinco mil são controladas por uma equipe que envolve 60 pessoas, entre fiscais e técnicos. A manutenção anual do sistema que pretende reduzir em mais de 50% o volume de desmatamento e mais do que isso em queimadas é de cerca de R$ 2,5 milhões. Só as taxas de licenciamentos, que variam de R$ 1 mil a R$ 3 mil, e multas – uma das que foram aplicadas em 2000 chegou a mais R$ 5 milhões – são capazes de sustentar o projeto que pode assegurar o futuro para as chapadas, para o cerrado, para o Pantanal, o maior e mais completo ecossistema do planeta. Segundo pesquisa do Instituto Vox Populi, a imensa maioria dos brasileiros quer conter a devastação e manter a vida, assim como a canção de Tom: “Não quero fogo, quero água. Deixa o mato crescer (…) Escuta o mato crescendo em paz.”