A respeito do escritor americano Ernest Miller Hemingway (1899-1961) sempre foram conhecidos os incontáveis amores, excessos e aventuras. O que pouca gente sabia era que o autor de O velho e o mar guardava um romance ainda inédito. Na comemoração do seu centenário de nascimento, ocorrido no dia 21 de julho do ano passado, o filho Patrick, incentivado por Michael Katakis, gestor dos direitos literários do escritor, lançou Verdade ao amanhecer (Bertrand Brasil, 378 págs., preço a ser definido), que está saindo no Brasil esta semana. De posse dos manuscritos de mais de duas mil páginas, Patrick cortou o material pela metade e escreveu uma apresentação e um posfácio detalhado. Adicionou ainda um glossário suaíli, língua falada no Quênia, onde se passa a ação – uma mistura de ficção e realidade baseada em um safári realizado entre 1953 e 1954, no qual Patrick esteve presente juntamente com Mary Welsh, a quarta e última esposa (oficial) de Hemingway.

Não à toa, uma tal srta. Mary revela-se um dos personagens principais da narrativa. Pois essa senhorita passa o livro inteiro empenhada em alvejar um leão, sempre acompanhada por Charo, seu portador de armas. No posfácio fica-se sabendo que Charo havia sido portador de armas de Pauline, segunda mulher de Hemingway e mãe de Patrick, que vê no empenho da madrasta outra intenção que não o prazer da caça. É também Patrick que fornece uma chave para se entender o relacionamento entre o narrador – Hemingway? – e Debba, uma nativa atraente no texto mas sempre descrita como diabólica pelos biógrafos do escritor. Segundo o filho, com esse personagem o autor redime-se da acusação de não saber retratar com fidelidade as mulheres em sua ficção. Mas nada disso fica explícito nas frases enxutas do livro.

E na África, em 1934, cenário do romance inédito, publicado em comemoração ao centenário de nascimento

Celebridade – Hemingway absorveu este estilo seco, direto e despojado de adjetivos da convivência com Gertrude Stein e Ezra Pound, entre outros, escritores de quem se aproximou nos anos 20, após ter passado um tempo como correspondente em Paris. Para muitos, este período encerra o auge de sua carreira. Nos anos 30 e 40, ele se transformou em celebridade e cultor de si próprio, “jogando para a torcida” e escrevendo livros sob medida para Hollywood, como Por quem os sinos dobram e Adeus às armas. Só renasceria nos anos 50, com a publicação de O velho e o mar (1952), título que lhe rendeu o Prêmio Nobel de Literatura. O início de sua paixão literária pelo continente negro se deu com As verdes colinas da África, de 1935. Por conta do relançamento pela Bertrand Brasil, em traduções devidamente atualizadas, dos outros livros de Hemingway, admiradores e neófitos poderão rever seus conceitos ou tomar contato com uma obra sempre impregnada de elementos auto-biográficos.

Ao que parece, a diabete e os excessos cobraram-lhe um preço à altura. Hemingway foi ferido na Primeira Guerra, espião na Segunda e, na Guerra Civil Espanhola, bebeu e comeu tudo o que pôde, amou diversas mulheres, perdeu outras tantas, teve três filhos e sofreu dois acidentes de avião, dos quais nunca se recuperaria. Ao perceber que a memória, entre outras coisas, estava faltando, deu um tiro na boca com uma de suas espingardas de caça numa cabana em Idaho. Era um domingo, 19 dias antes de seu aniversário. O suicídio é um problema recorrente em sua família. Seu pai e dois irmãos haviam feito o mesmo e a neta Margaux, filha de John, do primeiro casamento com Elizabeth Hadley, repetiria o gesto em 1996.

Espião – Já no final dos anos 50, vividos em sua maioria em Cuba, o Hemingway escritor também era uma pálida imagem do homem valente que escrevia em pé, como um toureiro. Hoje, suspeita-se que ele se deixava passar por espião americano à procura de nazistas como desculpa para ficar pescando. Consta que abandonou a escrita de Verdade ao amanhecer, iniciado no ano seguinte ao safári, para cuidar de Paris é uma festa, lançado postumamente. Debba, a srta. Mary, Charo, o também carregador de armas Ngui e Mthuka, o motorista africano de faces sulcadas por flechas ritualísticas, são personagens que vão se insinuando ao longo deste livro repleto de enfrentamentos entre kambas e kikuyus. Fiéis ou não aos terríveis mau-mau. Para epígrafe, Patrick escolheu um texto de seu pai que se inicia dizendo: “na África uma coisa é verdade ao amanhecer, mentira ao meio-dia”. Uma observação bem coerente com o outono de “Papa” Hemingway.