17/11/2000 - 10:00
O general Alberto Cardoso, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, dirige um caminhão sem freios. No comando da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) desde 14 de abril de 1996, o oficial de 60 anos, espírita e com reputação de liberal, não consegue, mesmo com uma mudança de sigla e um discurso ético, remover o coração do monstro criado pelo general Golbery do Couto e Silva, no início do regime militar. Dez anos depois da extinção do Serviço Nacional de Informações (SNI), a Abin repete os métodos de um dos filhotes mais nefastos da ditadura militar. Continua espionando figuras públicas, como o governador de Minas Gerais, Itamar Franco; comprando a rodo, quase sempre sem concorrência, equipamentos típicos de espionagem, como máquinas fotográficas e filmadoras, e ainda fazendo as abomináveis fichas de pessoas que se encaixariam no perfil de “ameaças ao Estado e à sociedade”. Pior: cabe a Cardoso decidir, sozinho, se uma investigação ou denúncia vai para a mesa do presidente – um andar abaixo do seu –, para o purgatório de alguma gaveta ou entra direto no triturador instalado ao lado de sua mesa, sem nenhum registro para a posteridade. É poder demais e controle de menos.
André Dusek |
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ESPIÃO Udini: “Muita gente age por conta própria” |
O general Cardoso jura que usa esse poder com correção. Não é bem assim. Na primeira semana de setembro deste ano, o governador Itamar Franco foi informado por generais da reserva que estava sendo espionado em Belo Horizonte e em Brasília por arapongas da Abin. Quando o Palácio do Planalto enviou tropas do Exército à fazenda da família do presidente Fernando Henrique Cardoso, em Buritis (MG), a pretexto de evitar uma invasão do MST, Itamar se convenceu de que estava em curso uma tentativa de desestabilizá-lo. Imediatamente, procurou militares em Brasília, entre eles o presidente do Superior Tribunal Militar, brigadeiro Sérgio Ferolla. De acordo com um araponga fiel a Itamar e que continua na Abin, essa movimentação do governador – inclusive uma reunião na casa do ministro Maurício Correia, do Supremo Tribunal Federal – foi acompanhada por agentes do general Cardoso. Na terça-feira 14, quando o próprio Cardoso admitiu ter recebido um informe sobre Itamar, o governador contra-atacou e responsabilizou FHC pela espionagem. Em carta ao presidente, classificou o ato como um “risco ao estado de direito”.
O chefe da Abin mostrou um empenho todo especial no escândalo envolvendo Eduardo Jorge, ex-secretário-geral da Presidência. No final de agosto, o general Cardoso enviou um informe reservado aos serviços de inteligência do Exército, da Marinha e da Aeronáutica determinando que toda informação relativa a EJ fosse repassada à Abin. A partir daí, só a Inteligência do Planalto cuidaria do caso. Esse foi o lado invisível da operação abafa feita para proteger o ex-coordenador da campanha de reeleição de FHC. Nessa mesma época, Eduardo Jorge tentou tranquilizar os seus parceiros investigados por ISTOÉ: contou que os passos do jornalista Andrei Meireles, da sucursal de Brasília, estavam sendo monitorados. Não disse por quem. A revista Veja revelou na semana passada que a Abin levantou a ficha do repórter, produzida desde os tempos da ditadura. Na segunda-feira 13, o diretor-geral da Abin, Ariel Rocha de Cunto, em carta enviada a Andrei, assegurou que “os registros disponíveis são anteriores a 30 de setembro de 1987”. Mesmo tendo prometido a ISTOÉ entregar a ficha integral do jornalista, o general Cardoso forneceu apenas um extrato assinado pelo diretor do Centro de Documentação da Abin, David Bernardes de Assis, que inclui um registro da participação de Andrei numa reunião do PCB em 24 de agosto de 1989 – dois anos depois da data anunciada pelo coronel De Cunto. Em 1989 já estava em vigor a nova Constituição, que proíbe a espionagem política.
Não são apenas os que incomodam o governo que entram na mira da turma do general Cardoso. Vale até rixa pessoal. O ministro da Saúde, José Serra, por exemplo, caiu em desgraça na Abin por ter atropelado uma investigação dos arapongas. Foi Serra quem levou o dossiê Cayman a FHC e disse que estava sendo ameaçado em telefonemas anônimos. Chamado pelo presidente, o general pediu que o assunto fosse mantido em sigilo durante a apuração. Dias depois, a notícia sobre a existência do dossiê – uma suposta conta do alto tucanato num paraíso fiscal, incluindo FHC e o próprio Serra – foi divulgada pelo jornalista Elio Gaspari. O general responsabilizou o ministro da Saúde pelo vazamento.
A verdade é que o general Cardoso não sabe o que andam fazendo os mais de 900 “analistas de informações” responsáveis por levantar o que se encaixa no elástico conceito de assuntos de Estado. “De vez em quando chegam documentos que não são do nível estratégico. Quando aparece algo, sempre é devolvido por mim junto com um cartãozinho dizendo: isso não é do nosso nível”, explica. Em entrevista a ISTOÉ, na qual estava acompanhado do general Jorge Alves de Carvalho, Cardoso não respondeu se a Abin tem ficha de João Pedro Stédile, líder do MST – um dos alvos preferenciais da arapongagem oficial –, e limitou-se a dizer que considera de “probabilidade baixa” que uma ex-funcionária da agência tenha espionado o procurador Luiz Francisco de Souza. Não negou que seus agentes continuem investigando clandestinamente. “Alguém aqui controla os filhos? Essa gente não deixa rastro.” Só que eles andam deixando rastro. O funcionário da Abin no Rio Temílson Resende, o Telmo, foi acusado pela Polícia Federal de ter instalado um grampo no BNDES que derrubou alguns dos principais auxiliares do presidente. Ele saiu da Abin pela porta da frente, aderindo a um Plano de Demissão Voluntária e vai ganhar uma bolada pelos “serviços prestados”.
O general recebeu a Abin das mãos de um homem que não está acima de qualquer suspeita, o próprio Eduardo Jorge. Desde essa época, até ministros vivem a paranóia de estarem sendo vigiados. “Essa gente foi treinada para isso. E eles continuam lá, sem rédeas”, conta um ex-ministro. “O sentimento que o País tem é de que todo mundo está sendo espionado, que há um vale-tudo da arapongagem oficial”, diz o deputado José Genoíno (PT-SP), que viu derrotadas todas as suas propostas para democratizar a Abin. A lei nº 9.883, que criou a Abin, foi um cheque em branco do Congresso. Caiu até a emenda que proibia a investigação de cidadãos por motivos ideológicos, políticos, éticos ou sociais. O controle externo da agência, que deveria caber a um grupo com acesso a todos os documentos, acabou ficando por conta de uma comissão sem poderes, formada pelos líderes da maioria e da minoria no Congresso. Uma comissão que nem sequer foi instalada.
Uma parte da mão-de-obra da Abin vem do antigo SNI, gente treinada para bisbilhotar a vida alheia de forma pouco ortodoxa. “Eles acostumaram-se a invadir residências, violar correspondências, ignorar os direitos civis e não entendem por que agora teria de ser diferente”, afirma a pesquisadora da Fundação Ford, Priscila Antunes, autora do estudo Agência Brasileira de Inteligência: gênese e antecedentes históricos, apresentado em agosto passado como dissertação de mestrado na Universidade Federal Fluminense. “Tem muita gente ali dentro agindo por conta própria”, concorda o detetive Udini, codinome de um homem que serviu durante 22 anos à área de inteligência. Hoje ele investiga casos de adultério e faz dossiês com “os podres” de políticos. Teve bons professores.
E o monstro não pára de crescer. Se depender de Cardoso, os 900 analistas de informação devem chegar a dois mil. O último concurso aberto para a seleção de 61 analistas exigia, entre outras coisas, conhecimento de alemão, árabe, espanhol, francês, inglês ou russo. A revelação de que a Abin continua praticando espionagem política mostra, porém, que os arapongas do general Cardoso ainda não saíram do velho porão em que agiam livremente durante a ditadura.
Colaborou Mino Pedrosa (DF)
“Essa gente não deixa rastro” |
ISTOÉ – O sr. mandou investigar o jornalista Andrei Meireles? ISTOÉ – Como, então, chegou à revista Veja uma ficha do Andrei? ISTOÉ – Consta onde? ISTOÉ – O sr. assegura que a ficha do Andrei é anterior à Abin, não sofreu atualização em sua gestão? ISTOÉ – Temos informações de que o Eduardo Jorge (ex-secretário-geral da Presidência) disse que o Andrei estava sendo monitorado. A Veja diz que foi pela Abin. Houve algum pedido dele? ISTOÉ – O Eduardo Jorge já comandou o setor de inteligência… ISTOÉ – Mesmo que a ordem não tenha sido sua, alguém da agência pode ter feito isso. O sr. controla toda a Abin? ISTOÉ – O sr. diz que nada foi acrescentado à ficha do Andrei e que existem muitas outras fichas herdadas, históricas. A Abin continua produzindo fichas? ISTOÉ – João Pedro Stédile, líder do MST, é fichado? ISTOÉ – Ao publicar trechos de conversas gravadas do juiz Nicolau (ex-presidente do TRT-SP), ISTOÉ afirmou que a Abin o investigava. Na época, o sr. divulgou nota negando o fato. A Abin investigou ou não o caso Nicolau? ISTOÉ – Continua sendo. Apesar da Abin, ele continua foragido. ISTOÉ – Sabe-se que o juiz estaria sendo protegido por pessoas da área de informações, para a qual prestou serviços durante o regime militar. ISTOÉ – A Abin não devia saber disso? ISTOÉ – O sr. diz que a Abin não bisbilhota. Mas no caso do BNDES quem é acusado de ter feito o grampo foi o araponga Telmo (Temílson Resende) da Abin no Rio. Não é contraditório? ISTOÉ – E esses bicos são permitidos? ISTOÉ – Isso feriu a imagem da Abin? ISTOÉ – E por que Telmo não foi simplesmente demitido? ISTOÉ – O sr. disse ter achado as fitas do BNDES embaixo de um viaduto. Isso não feriu sua credibilidade junto à opinião pública? ISTOÉ – O Telmo era um ex-agente do SNI. É saudável para a instituição a permanência desses ex-agentes? ISTOÉ – Quantos dos atuais funcionários da Abin trabalharam para o SNI? ISTOÉ – O sr. não tem medo de que a Abin, como o SNI, vire um monstro? ISTOÉ – O sr. recebeu um levantamento sobre irregularidades cometidas por funcionários do Ministério da Saúde, mas não levou adiante. Recebeu um documento sobre atividades do governador Itamar (Minas) e decidiu jogar no triturador de papel. O sr. concentra em suas mãos o destino de uma investigação… ISTOÉ – Uma pessoa correta pode estar hoje na Abin, mas amanhã pode aparecer um Vladimiro Montesinos (ex-assessor de inteligência peruana, pivô da maior crise política de Fujimori)… ISTOÉ – Não existe o risco de o sr. virar uma pessoa poderosa demais? ISTOÉ – Informação é poder? ISTOÉ – Digamos que o sr. enlouquecesse e decidisse investigar todo mundo, até o presidente da República. Qual o controle que a sociedade teria disso? ISTOÉ – Se o sr. desse ordem para investigar um governador? ISTOÉ – Então, como um subordinado lhe trouxe um relato sobre Itamar? ISTOÉ – Por que a PM Cleonice Caetano, que se envolveu com o procurador Luiz Francisco para vigiar os seus passos, saiu da Abin? ISTOÉ – Não é possível que, mesmo fora da Abin, ela continue como informante do governo? ISTOÉ – A Abin está investigando isso? ISTOÉ – O sr. acredita que ela foi posta ali por quem? ISTOÉ – Nesse controle interno, a Abin já flagrou outras bisbilhotices? ISTOÉ – O deputado José Genoíno (PT-SP) citou, como exemplo de ineficiência, o fato de a Abin não ter sabido que a Argentina estava tentando aderir à OTAN. ISTOÉ – Os serviços de inteligência funcionam até hoje nas democracias modernas para combater inimigos externos. Um estudo feito pela pesquisadora Priscila Antunes, da Fundação Ford, aponta ser o erro mais grave da Abin priorizar inimigos internos. ISTOÉ – A prioridade é interna ou externa? ISTOÉ – Qual seria o ideal? ISTOÉ – A Abin tem agentes na Argentina e nos países do Mercosul? ISTOÉ – Quais os maiores inimigos internos do Brasil? Andrei Meireles , Ricardo Miranda e Tales Faria |