O paradoxo de Easterlin surpreendeu o mundo ao pregar que o aumento da renda não necessariamente propicia bem-estar às pessoas. Pai da teoria, o economista americano Richard Easterlin chegou a esta conclusão, nos anos 70, ao estudar o Japão no pós-guerra. Naquele país, onde a produção per capita aumentara 700% em 20 anos, a população se dizia mais insatisfeita afetivamente. Desde então, a discussão sobre se dinheiro traz ou não felicidade saltou o muro acadêmico e, hoje, está em cada esquina. No Brasil, uma recente e abrangente pesquisa feita pelo grupo Catho, maior portal de recursos humanos da América Latina, mediu a satisfação de 41.429 pessoas em todas as regiões do País, em outubro de 2007 e fevereiro deste ano, ante a sua renda.

Os dados – que fazem referência a 900 cargos e abrangem 206 profissões – mostram que Easterlin não está errado. Apenas 20% dos pesquisados se dizem satisfeitos ou muito satisfeitos considerando seus atuais rendimentos, ao passo que mais da metade ocupa a posição de infelicidade. Outras conclusões:

São felizes tanto aqueles que ganham entre 1 e 6 salários mínimos (R$ 415 a R$ 2.489) quanto os que têm rendimentos acima de 20 salários mínimos (R$ 8,3 mil)
 São infelizes os que recebem entre 9 e 20 salários mínimos (R$ 3.735 a R$ 8.299)
 As mulheres são mais infelizes do que os homens – 62% contra 53%
 No Nordeste encontra-se o maior índice de satisfação. O Sudeste é a única região abaixo da média de felicidade
 Os infelizes têm entre 31 e 50 anos
 Educação é o segmento econômico em que o bem-estar das pessoas atinge o nível mais baixo

Economista e coordenador de pesquisas da Catho, Mário Fagundes se diz surpreso com o resultado do estudo do qual esteve à frente. “Sempre tive, como profissional da área de remuneração, a sensação de que o salário tinha relação direta com a satisfação”, explica ele. “Mas a pesquisa apontou que o nível hierárquico mais feliz é o da alta direção, que conta com presidentes, vice-presidentes e diretores de empresas cujos salários são de R$ 15.827, em média. O segundo grupo mais satisfeito é o de auxiliares e operadores, composto por gente como estoquista de supermercado, servente de pedreiro, operador de máquina e cortador de cana, que ganha em média R$ 935.”

ALTA DIREÇÃO: NÍVEL HIERÁRQUICO DOS FELIZES
O paranaense Rucelmar dos Reis iniciou carreira na área administrativa do HSBC com 18 anos. Depois de galgar vários degraus, tornou-se em 2006 diretor financeiro de um centro de tecnologia global. Ganha cerca de R$ 16 mil. Casado e pai de uma menina de sete anos, a remuneração deu a ele uma casa, dois carros e a chance de fazer turismo fora do País. Quando o stress de sua posição de prestígio se apresenta, o salário faz a diferença. “Posso viajar para algum lugar legal para recarregar as baterias com a família”, diz ele

Diretor financeiro de um centro de tecnologia global do banco HSBC em Curitiba, Rucelmar dos Reis ganha cerca de R$ 16 mil por mês. Casado e pai de uma menina de sete anos, ele se considera um profissional feliz. A remuneração deu a ele e à família uma casa, dois carros e a chance de fazer turismo fora do País. “Felicidade é poder materializar nossos desejos. E a renda é o mecanismo mais ágil que permite isso”, diz o economista Nelson Chalfun, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O paulista Renan Morais, porém, ganha R$ 612 por mês e também se diz muito feliz. Aos 21 anos, ele dá expediente das 7 h às 16 h e cuida do abastecimento e da reposição de produtos do supermercado Carrefour. “Meu salário é suficiente para ajudar em casa e comprar umas coisinhas para mim”, diz Renan.

Por que, então, a renda “compra felicidade” na concepção dos mais ricos e mais pobres e não dos que estão na posição intermediária, na classe média? A riqueza é um bom negócio para aqueles que têm carências elementares (como saúde, moradia e alimentação) porque, como metaforiza o economista Eduardo Giannetti, professor de história do pensamento econômico do Ibmec São Paulo, o copo de leite que essa pessoa toma todo dia pela manhã lhe dá enorme satisfação, que não será alterada pelo fato de outros desfrutarem do mesmo prazer. Ela se sente realizada se a renda permitir suprir essa necessidade de alimento, por exemplo.

SAÚDE: PROFISSIONAIS INFELIZESALEXANDRE SANT’ANNA/AG. ISTOÉ

Os profissionais de saúde estão entre os mais insatisfeitos na pesquisa da Catho. A médica endocrinologista Andrea Maria de Oliveira Basto, 51 anos, ilustra isso. Ela mal consegue fechar as contas no fim do mês com seus rendimentos que giram entre R$ 4 mil e R$ 5 mil. Residente no Rio de Janeiro, mãe de dois filhos, não tem carro e teve de tirar o caçula do inglês. “Moro de favor, no apartamento de um ex-marido”, diz ela, que foi casada duas vezes. “Faço cada vez menos coisas porque pago cada vez mais impostos e taxas”

BAIANO SATISFEITO
ANDERSON CHRISTIAN/AG. ISTOÉJúlio Martins, 26 anos, é engenheiro responsável pelo desenvolvimento de soluções elétricas da Mana Engenharia, onde entrou como estagiário em 2003, em Salvador. Satisfeito com o contracheque de R$ 3,3 mil, ele se divide entre o trabalho e uma pós-graduação, além de hobbies como surfe, ciclismo, rapel e mergulho. “A gente trabalha por produtividade, basta cumprir os prazos e fazer o serviço bem feito. Daí sobra tempo para viajar, namorar e ser feliz”, comemora o rapaz, para quem felicidade é ter tempo para viver

Por que, então, a renda “compra felicidade” na concepção dos mais ricos e mais pobres e não dos que estão na posição intermediária, na classe média? A riqueza é um bom negócio para aqueles que têm carências elementares (como saúde, moradia e alimentação) porque, como metaforiza o economista Eduardo Giannetti, professor de história do pensamento econômico do Ibmec São Paulo, o copo de leite que essa pessoa toma todo dia pela manhã lhe dá enorme satisfação, que não será alterada pelo fato de outros desfrutarem do mesmo prazer. Ela se sente realizada se a renda permitir suprir essa necessidade de alimento, por exemplo.

Outra explicação para a alta satisfação entre os mais pobres é, diz Fagundes, da Catho, o fato de o volume de contratações de pessoas que fazem parte da classe baixa ter crescido 60%, entre 2003 e 2007. “O nordestino é o povo mais feliz, por exemplo, porque o Nordeste tem registrado um crescimento econômico muito grande”, afirma Fagundes. “Com mais empregos e mais salários e a ajuda de programas assistenciais como o Bolsa Família, observamos uma explosão nos padrões de consumo, fato inédito na região.”

Já no Sudeste, uma das explicações que o colocam como a única região brasileira abaixo da média de felicidade é a maior concentração de profissionais que ganham entre 5 e 15 salários mínimos, de acordo com a pesquisa da Catho. Trata-se da classe média, que paga escola, plano de saúde, prestação do carro, muito imposto e não consegue guardar dinheiro. Nesse patamar, o indivíduo já suplantou o degrau das necessidades básicas e tende, a partir de um certo nível de renda, a se preocupar muito mais com a sua posição relativa (dá mais valor à comparação de sua riqueza com a de outros) do que com seus ganhos absolutos.

Para o cidadão da classe média, adquirir um Rolls-Royce depois de anos de trabalho a fio deixa de ter valor se, no dia seguinte à compra, ele se deparar com carros idênticos nas ruas. Sua felicidade, então, estará sempre em um bem ao qual não tem acesso. “É por causa dessa corrida armamentista do consumo que as proporções entre felizes e infelizes não se alteram, embora a renda média por habitante cresça com o passar do tempo”, explica Giannetti. Uma das maiores autoridades nacionais quando o assunto é a relação entre renda e felicidade, ele completa: “E é por isso que, entre os mais ricos, os vitoriosos nessa corrida, há uma proporção maior dos que se declaram felizes.”

O mesmo quadro é verificado nos Estados Unidos. Pesquisas mostram que dinheiro traz felicidade para os americanos que ganham anualmente até US$ 20 mil e acima de US$ 80 mil, em média. E, no hiato desses rendimentos, o bem-estar das pessoas não se modifica. Entre os britânicos – que estão mais ricos, saudáveis e vivem mais, segundo uma pesquisa divulgada no mês passado pelo Escritório para Estatísticas Nacionais (ONS) – o índice de satisfação caiu nos últimos 30 anos.

Dados do instituto americano Gallup Word Poll, porém, colocam o Brasil como um país feliz. Mais: está entre os 25 mais felizes do mundo e acima dos outros três países que formam os BRICs – Rússia, Índia e China. A pesquisa mediu, em 2007, o índice de felicidade em relação à vida em 132 países. O Brasil é considerado um emergente no quesito felicidade, cujo nível é o mais alto da América Latina e está acima, por exemplo, dos países do Leste Europeu.

INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS AGRADAM FUNCIONÁRIOS
Formada em administração de empresas, Fabíola de Queiroz Costa, 30 anos, trabalha desde 2006, em São Paulo, os quadros do fundo de investimentos Victoire Finance Capital, onde recebe salário de R$ 3.500 e bônus semestrais de R$ 8 mil. “Sou feliz em trabalhar com aquilo para o qual estudei, gosto da dinâmica da minha rotina e principalmente de poder aprender cada dia mais com a minha profissão”, diz ela. Carreiras em instituições financeiras estão entre as que dão mais satisfação, segundo a pesquisa

Em uma escala de 0 a 10, o País atingiu 6,64, mais próximo dos europeus, como a Dinamarca, líder com 8,02, e mais distante dos africanos, como o último colocado Togo, com 3,2. “A redução das desigualdades, da inflação e o aumento do emprego formal ajudam a explicar por que as pessoas aqui se dizem felizes”, diz Marcelo Neri, chefe do Centro de Políticas Sociais do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV). “Essas boas razões conjunturais estão fazendo o brasileiro olhar mais para o País e menos para o próprio umbigo.”

Giannetti, do Ibmec São Paulo, concorda que o emprego é que produz maior impacto no bem-estar subjetivo (ou seja, na felicidade) da sociedade. Para ele, a desigualdade de acesso às oportunidades torna o dinheiro mais poderoso na mente de quem ganha pouco e dá um poder desproporcional perante a sociedade aos que ganham muito. E, para provar que por aqui a renda relativa, ou seja, o status, fala mais alto, ele costuma fazer um experimento em sala de aula. Perguntados se preferem ganhar R$ 100, enquanto as outras pessoas ganham R$ 50, ou R$ 150, enquanto todas recebem R$ 300, 100% dos alunos de Giannetti escolhem a primeira opção. “No segundo caso, receberiam 50% a mais, mas carregariam o carimbo de pobres”, explica o economista.

É preciso ter em mente que, em nome da busca pela riqueza, pode-se estar sacrificando relacionamento afetivo, saúde, tempo dedicado à família, amigos e filhos. Um estudo com ganhadores de loteria, na Inglaterra, mostra que os índices de felicidade desse grupo se prolongaram por no máximo dois anos. Depois desse período, o índice de felicidade regride à média geral da população. Conclui Giannetti: “Os determinantes da felicidade humana, provavelmente, estão muito mais na imaginação do que no bolso das pessoas.”

DESCONTENTE COM O SALÁRIO
No magistério há 12 anos, a professora de educação física Sônia Regina Aguiar Vieira, 35 anos, trabalha das 7h30 às 18 h e adora sua profissão. Só não gosta do salário pago pela Fundação Educacional de Goiás (R$ 2,6 mil) e da falta de estrutura. Para complementar a renda, Sônia se especializou em musculação e psicomotricidade e trabalha nos fins de semana em academias particulares como personal trainer, numa estafante jornada que começa às 6 h. “Trabalhar mais e durante os fins de semana é a única maneira de conseguir um dinheiro extra.”
JEFFERSON RUDY/AG. ISTOÉ

IBRAHIM CRUZ/AG. ISTOÉFELICIDADE COM POUCO DINHEIRO
A melhor hora do dia para Renan Morais, 21 anos, é quando termina sua viagem de ônibus de 40 minutos, do Capão Redondo à Granja Julieta, na zona sul de São Paulo, e começa outra jornada de trabalho. Ele é operador de loja do Carrefour, onde é responsável pelo abastecimento e pela reposição de produtos nos setores de automotivos e jardinagem. “Não tenho do que reclamar. Faço o que gosto e a loja toda é de amigos. Dou risada o dia inteiro”, diz ele, que ganha R$ 612 por mês, além de benefícios, como transporte e convênio médico