O governo se prepara para implantar um projeto abrangente de reforma do sistema financeiro brasileiro. Vai muito além da independência do Banco Central. Envolve a reorganização da supervisão das atividades de bancos, mercado de capitais, seguros e previdência privada, hoje sob a responsabilidade de quatro órgãos distintos: respectivamente, BC, Comissão de Valores Mobiliários (CVM), Superintendência de Seguros Privados (Susep) e Secretaria de Previdência Complementar. A idéia é criar uma agência reguladora para cuidar de todos esses assuntos – com exceção do acompanhamento da saúde do setor financeiro, que permaneceria no BC.

Mas isso ainda está sendo debatido internamente no governo, diz Armínio Fraga, o maior entusiasta das mudanças (leia entrevista). Não é à toa que o presidente do BC trata o tema com todo o cuidado possível. A atual equipe econômica está desenhando, à sua imagem e semelhança, dois órgãos autônomos, um o próprio BC e o outro a agência reguladora. Os princípios básicos em vigor – entre eles, estabilidade monetária e responsabilidade fiscal – podem virar tábua da lei para governos subsequentes.

“Antigamente, a isso se chamava de golpe”, dizia, no início de dezembro, editorial do site Primeira Leitura, do ex-ministro Luis Carlos Mendonça de Barros. “Agora que a oposição mostrou que pode ganhar as próximas eleições, o governo FHC quer dar uma sobrevida ao estado de coisas”, afirma Guido Mantega, um dos principais economistas do Partido dos Trabalhadores.

Francisco Gros, presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social (BNDES), não vê “cunho ideológico na proposta”, pois, para ele, os princípios adotados pela atual gestão são “pré-condições” para qualquer política econômica. “Se um governo de oposição aceita a irresponsabilidade fiscal e a não-estabilidade da moeda, isso devia ser explicitado na sua plataforma de campanha”, ironiza. Lembre-se de que Gros discursava em defesa de um BC independente, no estilo do Fed americano já no início dos anos 90, quando presidia a instituição e era chefe de Fraga. Outro ex-presidente do BC, Gustavo Loyola, também defende a independência da instituição.

De fato, já se tenta a algum tempo solidificar a política que o governo considera inquestionável. Sérgio Werlang, ex-diretor do BC, foi responsável pela estruturação do sistema de metas inflacionárias. Funciona da seguinte forma: o governo fixa um porcentual de inflação para os próximos dois anos e o BC executa uma política para atingir a meta. Na prática, significa condicionar à prioridade máxima – controle dos preços – todas as outras variáveis de política econômica, como crescimento e emprego. O próximo governo assumirá com metas fixadas para os dois primeiros anos de gestão, 2003 e 2004. Poderá modificá-las, caso deseje? É uma das muitas dúvidas que estão no ar.

Werlang resolveu mudar as exigências no currículo dos técnicos do BC. Priorizou a formação que faz escola na equipe econômica, ou seja, um diploma made in EUA. “No começo houve alguma resistência, porque era uma novidade, mas depois eles viram que era importante para eles próprios”, diz. Na mesma toada de atrair pessoas com pensamento afinado à equipe econômica, dois cariocas que frequentam a mesma praia que Fraga e Gros chegaram recentemente ao governo: Solange Paiva, no lugar de Paulo Kliass na Secretaria de Previdência Complementar, e Marcelo Fernandez Trindade, como diretor da CVM.

Empenho – O projeto do governo vai ter que ser negociado com o Congresso Nacional. O ministro da Fazenda, Pedro Malan, esteve recentemente na Câmara dos Deputados defendendo a aprovação rápida da regulamentação do artigo 192 da Constituição Federal, que trata do sistema financeiro. O assunto está pendente há 12 anos, mas, se depender do empenho do governo, agora vai. “O assunto será prioridade na nossa pauta do ano que vem”, diz o líder do governo na Câmara, Arnaldo Madeira (PSDB-SP).

 

O criador e a criatura

Em entrevista a ISTOÉ, o presidente do Banco Central, Armínio Fraga, procura dar sua visão sobre a independência do BC – termo que, aliás, considera equivocado:

ISTOÉ – Qual é o projeto do governo para a criação de um Banco Central independente?
Armínio Fraga
– Não tem um projeto pronto. Há alguns princípios que são meus, não posso dizer que são do governo.

ISTOÉ – E quais são esses princípios?
Fraga – Uma visão que tenho disso a partir de 15 anos de pesquisa acadêmica e pela minha experiência, tanto privada quanto pública, que é a seguinte: faz sentido para o BC o objetivo de longo prazo voltado para a estabilidade de preços e do ambiente macroeconômico. É um assunto que deve sair da miopia do dia-a-dia. Para cumprir esse objetivo, o BC deve ter as ferramentas e um horizonte de tempo necessário e compatível. Daí a idéia de um mandato. Não para fazer o que der na telha, e sim para perseguir um objetivo social, que é a manutenção de um ambiente estável. Que, aliás, é quase uma unanimidade. Pode falar com as pessoas na rua que você vai ver isso.

ISTOÉ – Qual seria esse mandato?
Fraga – Isso está para definir. Existem inúmeros estudos feitos ao longo dos anos, mas prazo específico é algo que varia de país para país.

ISTOÉ – O que mais está no desenho geral?
Fraga – Acho que a terminologia BC independente dá a impressão errada. Não estamos falando de uma independência absoluta em que um presidente do BC possa fazer um monte de bobagens impunemente. Daí a importância do terceiro ponto: o BC tem de prestar contas. E tem um outro ponto ainda, que é a questão da fiscalização. Então queria registrar em primeiro lugar, e meio que me proteger aqui, que esse é um assunto que também está em debate.

ISTOÉ – Esse assunto não está em debate desde o começo do ano, quando foi criado o grupo de trabalho sobre mercado de capitais e poupança de longo prazo?
Fraga – Pois é. Alguns pontos me parecem razoáveis, a ser submetidos a uma maior discussão. Primeiro que o BC tenha também a função de se preocupar com as questões sistêmicas. Ou seja, tudo o que possa gerar reação em cadeia, pânico, crise de crédito. Questões voltadas diretamente para o consumidor de produtos financeiros deveriam ficar fora do BC. Boa parte disso já está fora, na CVM, na Susep e na Secretaria da Previdência Complementar. E há ainda uma terceira discussão que versa sobre a importância ou não de se coordenar melhor ou eventualmente até de se colocar as três agências debaixo do mesmo telhado.

ISTOÉ – Esse grupo de trabalho se encontra mensalmente desde janeiro?
Fraga – De seis em seis semanas tem sido a prática. Depois, dentro do BC, existe gente estudando o assunto desde 1991, quando fui diretor. Mas provavelmente antes já existia essa discussão.

ISTOÉ – Apesar de se discutir o projeto há algum tempo, ele ainda está indefinido?
Fraga – Está avançado, mas não está pronto. Quando estiver pronto, a gente vai divulgar.

ISTOÉ – Quando as idéias vão ser colocadas em prática?
Fraga – Você tem de conversar com alguém da área política. O artigo 192 da Constituição está tramitando na Câmara. E já passou na Comissão de Constituição e Justiça e está aguardando uma apreciação do Plenário. Depois que isso acontecer, então se abre um espaço para a apresentação de um projeto.

ISTOÉ – Por que esse assunto que o sr. colocou e defende há muito tempo só vem à tona agora?
Fraga – Porque o Congresso e o Executivo deram sinais de que agora chegou o momento de discutir isso para valer. Eu, como acadêmico, estudo isso a minha vida inteira.

ISTOÉ – Não pode amarrar o próximo governo, como se comenta?
Fraga – Você acha que a Lei de Responsabilidade Fiscal amarra o próximo governo? É uma lei voltada para produzir algo que é um bem público. Da mesma maneira, um BC desenhado a partir desses princípios que procurei descrever traz benefícios para a sociedade, na minha avaliação, sem maiores custos, porque evita uma volta ao nosso passado de hiperinflação e bagunça financeira. Qualquer lei que o Congresso faça vai amarrar governos.

ISTOÉ – Imagine que a população decida por outro modelo na hora de ir às urnas.
Fraga – Vota-se outra lei. Não tem problema.

ISTOÉ – Quem fixaria as metas inflacionárias: o governo ou o BC?
Fraga – O modelo de hoje é um modelo bom. O governo fixa e o BC persegue essas metas.

ISTOÉ – Quando o próximo governo chegar, vai ter dois anos de metas inflacionárias aprovadas. Poderia mudá-las?
Fraga – Tem que ver o que cada partido acha. Não é meu papel discutir isso.

ISTOÉ – E se o próximo governo quiser uma taxa de juros mais baixa, ter outras prioridades?
Fraga – Isso aí, com toda a franqueza, se fosse possível, pode ter certeza que já estaria sendo feito. A taxa de juros é a mais baixa possível, compatível com a meta de se reduzir a inflação e criar um ambiente propício ao investimento no Brasil. Essa argumentação não tem cabimento. Agora, existem desenhos de política social, creditícia, cambial diferentes e nada disso estaria prejudicado pelos princípios que detalhei. A discussão se presta a interpretações equivocadas, às vezes populistas ou demagógicas que podem dar a impressão errada. Não vamos criar um monstro independente que vai comer criança.

ISTOÉ – Seria sua intenção continuar num BC independente?
Fraga – Isso não sou eu que decido.

ISTOÉ – E se fosse do desejo de quem decide?
Fraga – Para esse tipo de coisa a gente não pode ter uma resposta honesta a priori, depende de uma série de circunstâncias. Qualquer coisa que dissesse, estaria enrolando.