20/12/2000 - 10:00
Há duas semanas, o presidente Fernando Henrique Cardoso e o ministro da Fazenda, Pedro Malan, fizeram referência ao que consideram “complexo de inferioridade” dos brasileiros. O alvo do presidente e do ministro era o de sempre: os setores contrários ao modelo de inserção do Brasil na economia globalizada. Em palestra na Escola Naval, no Rio de Janeiro, o presidente disse que esse sentimento de inferioridade nos condena ao “eterno destino de alma pequena”. É bem verdade que o brasileiro já foi mais ufanista do que no período Fernando Henrique, mas as análises das causas e consequências da baixa-estima nacional nem sempre coincidem com as expostas pelos dois homens mais poderosos do País. São muitas as divergências e as complexidades na procura de diagnósticos para a alma brasileira. Essa busca acaba de ganhar um reforço intelectual de peso com o lançamento do livro Quatro autores em busca do Brasil, da editora Rocco.
Para visitar as entranhas do País sob os mais variados ângulos, a editora Leny Cordeiro convocou o historiador e jornalista José Geraldo Couto para entrevistar quatro feras: o psicanalista Jurandir Freire Costa, o filósofo Renato Janine Ribeiro, o antropólogo Roberto DaMatta e o historiador José Murilo de Carvalho. Todos eles têm livros publicados, nos quais dissecam as paixões, a estética, a política, a sexualidade, as transformações da sociedade, a psique individual e os complexos coletivos.
A falta de identidade do povo brasileiro é abordada por Renato Janine Ribeiro. Ele flagra um preconceito na expressão descoberta do Brasil, cuja palavra “descoberta” pressupõe que os índios, que já moravam em nossas terras, não tivessem “olhar”, só os europeus. Mas o mais dramático é que desde então continuamos a nos perguntar quem somos, enquanto outros povos se perguntam o que fazer. Segundo o raciocínio de Janine, o presidente não deixa de ter uma certa razão: muitas vezes nos aceitamos como país subalterno, atrasado, descaracterizado. O filósofo lamenta que as questões políticas estejam restritas somente aos políticos e que os cidadãos se limitem a reivindicar direitos individuais ou coletivos. Segundo ele, há uma forte tendência a transformar os direitos em bens de consumo. “Será que dá para reverter o caminho da privatização dos direitos humanos?”, pergunta Janine.
A questão é revista, também, no ensaio de Roberto DaMata. Ele afirma que o cidadão que segue a lei, cumpre com as obrigações e não barganha direitos é considerado um otário no Brasil, onde a ideologia da malandragem prevalece. Depois de refletir sobre malandros e heróis brasileiros – tema que domina como poucos –, o antropólogo se diz otimista (a seu jeito). Segundo ele, o mundo globalizado não será governado por interesses hegemônicos. Será um mundo fragmentado, heterogêneo e feito de muitos códigos. “Penso que o Brasil, por ser um país que sempre viveu com as coisas fora do lugar, acostumado a lidar com o paradoxo, terá vantagens inegáveis neste mundo”, afirma.
Embora tenha dedicado boa parte de sua análise aos 500 anos do Brasil, José Murilo de Carvalho conclui olhando para o futuro. Ele recomenda humildade a quem estuda os problemas brasileiros e a quem tenta traçar o modelo ideal de país. “Nossa prática democrática de hoje está longe de corresponder aos padrões dos países ocidentais, sobretudo no que diz respeito à garantia dos direitos civis e sociais”, diz. Desse impasse, surge um dilema: ou aceitamos o modelo ocidental e nos consideramos inferiorizados, num raciocínio oposto ao do presidente e do ministro, ou decidimos que somos um caso à parte, com valores e práticas distintos.
Espetáculo grotesco – No plano individual, merece destaque a análise do psicanalista Jurandir Freire Costa. Ele identifica, entre os males do homem urbano, o crescimento da idolatria ao corpo na mesma proporção de uma grande indiferença pelo outro. E aponta uma novidade: tratar os pobres como coisa sem importância, isso sempre existiu; o novo é a atitude de indiferença para com os integrantes da mesma classe. O individualismo contemporâneo parece ter chegado ao topo. E a alimentação principal dessa sociedade vazia e voltada para o próprio umbigo são as revistas e os programas de tevê que expõem a vida íntima de celebridades. As fofocas nunca tiveram tanto espaço e fizeram tanto sucesso.
Segundo o psicanalista, à medida que fomos nos desinteressando do bem comum, o foco caiu na vida íntima de uma maneira tão descontrolada que desembocou no que ele chama de “espetáculo grotesco de hoje”. O debate sobre grandes temas foi substituído pela “canalhice”, como diz. Embora se confesse espantado em ver “tanta tinta, tanto papel, tanto tempo” dedicados a bisbilhotar a vida alheia, Jurandir, ainda assim, afirma: “Não sou contra o circo. Sou contra o vício do circo em época de escassez de pão.” Precisa dizer mais?
Às vésperas de uma nova época – a despeito das desavenças entre cientistas e religiosos, o calendário marca um novo milênio –, é tempo oportuno para discutir os caminhos do Brasil aqui e no mundo. Com a alma grande e aberta, o que esses intelectuais mostram é que ainda há tempo para o País dar certo.