No papel, era um exemplo de manejo florestal, de uso racional da mata, sem degradação do meio ambiente. As árvores a serem cortadas estavam marcadas, o cronograma de exploração previa um rodízio nos trechos de mata. As portadoras de sementes escolhidas seriam preservadas, de modo a garantir a regeneração das mais de 12 espécies de madeiras nobres existentes, entre elas, jatobá, angelin, tatajuba, cedro, cedroarana e amarelão. Dessa forma, o projeto elaborado pelo engenheiro florestal Murilo Menezes de Farias para a Fazenda São João, em Marabá, de propriedade de Samuel Fernandes Martins, foi aprovado pelo Ibama no final de 1995. Pelo projeto, dos três mil hectares da fazenda, metade ficaria como opção futura para desmatamento e formação de pastos e a outra metade seria explorada de forma seletiva, com a permanência, em cada um dos cinco trechos de 290 hectares, de cerca de 60% das árvores. Acompanhada com exclusividade por ISTOÉ, uma inspeção na Fazenda São João, realizada na quarta-feira 13 pelo procurador da República Sydney Madruga – com a superintendente substituta do Ibama no Pará, Lucimar Paixão de Oliveira, engenheiros florestais e fiscais –, mostrou a diferença entre as boas intenções e a realidade na Amazônia. Quase 90% da área da fazenda São João está devastada. A floresta foi substituída por pastos de capim viçoso. A preservação ambiental, tão decantada no projeto original, não passou de ficção. “Isso é um absurdo. O que houve aqui foi desmatamento puro e simples. E os responsáveis vão ter que enfrentar o rigor da lei”, ataca o procurador Madruga.

O primeiro chamado a dar explicações, no próprio local, foi o engenheiro Murilo, autor do projeto, que acompanhava a inspeção como guia. Ele tentou defender-se dizendo que desde o começo de 1998 tinha deixado de vistoriar os trabalhos, porque o proprietário resolvera acabar com a exploração de madeira. “Olha, é a primeira vez que volto aqui. Não entendo o que aconteceu”, afirmou, para espanto do procurador e dos técnicos do Ibama. Segundo Murilo, que também representa legalmente Samuel Martins, no início tudo foi feito dentro das rigorosas regras do plano de manejo. Mas admitiu que, na mesma época, Samuel, dono da fazenda, tinha decidido por conta própria inverter a área de manejo. O local onde a floresta tinha que ser parcialmente mantida virou a área das futuras pastagens. O Ibama não foi notificado da mudança, o que seria obrigatório para a execução da alteração. Murilo disse ainda que não sabia o que tinha ocorrido depois de dezembro de 1997, quando as chuvas interromperam o trabalho. De acordo com levantamento feito pelo Ibama, a pedido de Madruga, a defesa feita por Murilo não corresponde à verdade. Os registros oficiais de autorizações para transporte de madeira mostram que as irregularidades aconteceram desde que a primeira árvore foi ao chão. O projeto foi aprovado sem preocupação com o meio ambiente e, uma indicação de que o desastre ecológico é obra também do Ibama. Não há mapeamento de curva de nível, apontando áreas de morro e planície nem indicação da estrada de ferro Carajás, que corta, na diagonal, a fazenda.

A exploração de madeira prevista para o primeiro lote de 290 hectares autorizava o corte de 12 mil metros cúbicos de madeira, equivalente a menos de duas mil árvores, em 1997. Os registros, no entanto, indicam que saíram oficialmente da propriedade 14 mil metros cúbicos de madeira nesse ano, para cerca de dez serrarias da região. Apesar disso, uma inspeção da delegacia do Ibama de Marabá considerou que o projeto estava seguindo as regras e respeitando o meio ambiente. “Uma coisa é certa: não sai madeira daqui há mais de dois anos, até porque não há mais o que explorar”, rebateu o engenheiro florestal do Ibama Nilson Pantoja.

Pela análise dos técnicos, a fazenda toda foi desmatada em apenas dois anos. Ou seja: mais de 100 mil metros cúbicos retirados de uma só vez.

Omisso e conivente – Confrontado com a realidade, Murilo não soube explicar por que continuava sendo procurador de Samuel e responsável técnico por um plano de manejo desrespeitado e que, segundo ele, está parado desde fevereiro de 1998. Sua saída foi dizer que Samuel, que mora em Serra, no Espírito Santo, nunca mais havia voltado ao Pará, o que impedia o cancelamento da procuração. “Não falo com ele há mais de um ano”, defendeu-se. Para Sydney Madruga, a situação de Murilo está tão enrolada quanto a de seu patrão. “Estamos diante de mais um crime ambiental contra a Amazônia. Murilo vai ter de dar muitas explicações no processo que vamos abrir contra Samuel”, garante. Contra o engenheiro florestal, há suspeitas muito fortes de que, no mínimo, ele foi omisso e conivente com o processo de desmatamento, também conhecido como corte raso da mata. O Ibama está fazendo um levantamento detalhado da área da fazenda para ser confrontado com fotos de satélite. Nos bancos de memória dos computadores do órgão em Brasília está registrada a evolução anual da retirada da mata. “Uma análise dos dados vai permitir que se saiba exatamente quando o desmatamento aconteceu”, afirma a superintendente substituta Lucimar Paixão de Oliveira. O Ibama promete não parar por aí. Com base na Lei Ambiental, os fiscais vão calcular o volume de madeira retirado e definir as multas. Como a dupla Samuel e Murilo deixou que fosse devastada até uma área florestal de proteção permanente, no Igarapé da Onça, a multa poderá passar de R$ 3 milhões.

Os problemas de Samuel Fernandes Martins, que se intitula industrial na escritura de compra da fazenda, não se resumem às punições do Ibama. O procurador Sydney vai acionar a Procuradoria da República no Espírito Santo e a Polícia Federal para que encontrem Samuel no Estado e o convoquem para depor. “Ninguém em Marabá sabe o seu paradeiro. Então é um caso para a Polícia Federal”, afirma Madruga. O procurador considera que Samuel e, muito provavelmente, Murilo podem ser enquadrados em no mínimo quatro artigos da Lei Ambiental. Entre os crimes, está o corte raso de quase 90% da propriedade, desobedecendo a obrigatoriedade de manter 50% da floresta de pé. Outro crime punido com cadeia é a derrubada de floresta de proteção permanente. Como nunca foi pedida autorização para desmatamentos com objetivo de formar pastagens, a lista de crimes de Samuel e seu dublê de engenheiro florestal e representante só aumenta.

“É um caso grave que passa a ser prioridade do Ibama no Pará”, afirma a nova superintendente Selma Melgaço, que tem como braço direito Lucimar Oliveira. Selma está no cargo há poucos meses, com a missão de moralizar o órgão, afetado com a prisão do ex-superintendente Paulo Castelo Branco, por corrupção passiva e por tentativa de suborno, de três fiscais de Marabá. Além dos problemas com a lei, Murilo poderá ter seu registro de engenheiro florestal cassado. O Ibama já decidiu que, encerradas as apurações, encaminhará um relatório ao Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura (CREA) do Pará, mostrando todas as irregularidades cometidas por ele no exercício da profissão. O procurador Sydney Madruga vai estender as investigações além dos limites da Fazenda São João. Durante a inspeção, o grupo verificou que praticamente todas as áreas na região não mantiveram os 50% de mata exigidos pela legislação antes de 1998 (o porcentual de mata a ser preservada subiu para 80%). “Diante do que vimos, pode se prever o que os dados do satélite do Ibama vão mostrar. E estejam certos: vamos agir”, afirmou Sydney Madruga. 

Alvos da motosserra
Mogno – Está ameaçado. Sua extração foi proibida. É a mais valiosa das espécies. O metro cúbico chega a US$ 850

Jatobá – Usado na construção civil, em móveis e nos instrumentos musicais

Ipê – De fácil manejo, é usado na fabricação de portas, janelas e instrumentos musicais

Angelin – São três espécies: pedra, rajado e vermelho. Muito resistente aos fungos e cupins. Usado nas construções civil e naval e em dormentes

Outros alvos – Várias espécies de cedro, maçaranduba, louro, tatajuba, cumaru, pau-amarelo e roxo, currupixa, cupiuba, muiracatiara, virola e sucupira