Poucos segundos antes da primorosa abertura de A marca da maldade – uma sequência de quase quatro minutos com a câmera em grua saindo do alto de um telhado, seguindo os passos de Charlton Heston e Janet Leigh – lê-se um texto avisando que o que se verá a seguir é uma nova versão do famoso clássico de 1958. Não uma versão qualquer, mas como ele queria que fosse. Ele, no caso, é Orson Welles, o diretor do filme que não gostou de saber que a Universal pretendia reeditar uma de suas obras-primas. Furioso, Welles encaminhou ao estúdio um memorando de 58 páginas. Era uma espécie de testamento detalhando suas ordens para a finalização correta de A marca da maldade. Só há dois anos, 13 após a morte do cineasta, sua vontade foi feita. O “novo” A marca da maldade encerrará em 31 de janeiro o festival do canal pago Telecine Classic, Filme noir – o cinema das sombras, que programou 31 filmes do gênero, sempre às 22h, começando no primeiro dia do ano. Assinadas por diretores do porte de Stanley Kubrick, Otto Preminger, Samuel Fuller, Fritz Lang e Robert Wise, 17 destas fitas nunca foram exibidas na televisão brasileira.

São obras de grandes nomes que se curvaram a um dos gêneros mais cultuados do cinema americano e cuja melhor fase aconteceu entre as décadas de 40 e 50, criando inegável influência nas gerações mais novas de diretores. Entre eles, Curtis Hanson, que recentemente recriou o estilo com o premiado Los Angeles – cidade proibida. Ele é um dos diretores que dão seu depoimento no documentário Reconstruindo um clássico: A marca da maldade, que antecede a exibição do filme. Mas o mérito do festival é também oferecer ao espectador a oportunidade de assistir à genuína safra de algumas das melhores produções noir feitas em preto-e-branco, todas com atmosfera sombria e histórias intrincadas de suspense nas quais ninguém, nem mesmo o detetive invariavelmente truculento, é confiável. Para a estréia de 1º de janeiro está programada a fita considerada uma das pioneiras do gênero, Quem matou Vicki?, de 1941, com Victor Mature. Na sequência vem Grande golpe, de 1956, assinado por Stanley Kubrick.

Em seu livro O outro lado da noite: filme noir, que será lançado em janeiro pela editora Rocco, o pesquisador e cinéfilo carioca Antonio Carlos Gomes de Mattos lembra que o filme de Kubrick carrega todos os elementos característicos, ou seja, estrutura narrativa complexa, mulheres fatais, personagens bizarros e pouca iluminação. Citando críticos renomados da época, Mattos enumera outros traços marcantes do noir como a importância da atração sexual entre os personagens, o pessimismo e perversidade cotejados pela onipresença da morte. Normalmente careta, Hollywood nunca foi tão magistralmente sórdida.