20/12/2000 - 10:00
José Fernando Perez e Fernando Reinach são leitores fiéis da revista semanal britânica Nature, a mais importante publicação científica do mundo. A rotina acadêmica da dupla explica o hábito comum. Perez, físico e engenheiro eletrônico, 56 anos, é professor titular de física e matemática da Universidade de São Paulo e diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), a mais eficiente agência de fomento à pesquisa do País. Reinach, 44 anos, bioquímico e pesquisador respeitado, leciona no Instituto de Química da USP e também na Faculdade de Medicina da Cornell University, nos Estados Unidos. Mas a edição da Nature de 13 de julho de 2000 foi tratada pelos dois assinantes com muito carinho. Pela primeira vez em 130 anos de existência, a revista dedicou sua capa a uma pesquisa totalmente desenvolvida no Brasil, idealizada por Perez e Reinach e coordenada pelo inglês Andrew Simpson, do Instituto Ludwig de São Paulo (leia quadro). O título Citrus pathogen sequenced abriu caminho para um artigo de sete páginas sobre o mapeamento do genoma da Xylella fastidiosa. Causadora da Clorose Variegada de Citrus, conhecida como praga do amarelinho, a bactéria ataca 30% dos laranjais paulistas.
Não seria exagero dizer que se trata de um dos maiores feitos da ciência brasileira em todos os tempos. Para organizar as 5,4 milhões de letras do código e sequenciar os 2,7 milhões de pares de bases químicas do DNA da Xylella, Reinach e Perez criaram a rede Onsa, um instituto virtual sem instalações fixas ou corpo administrativo, reunindo 192 pesquisadores das três universidades estaduais paulistas (USP, Unicamp e Unesp), divididos em 35 laboratórios ligados por computador. O sequenciamento colocou o Brasil na liderança mundial das pesquisas genéticas sobre fitopatógenos (organismos que atacam plantas). Em janeiro, a dupla vai anunciar, nos Estados Unidos, a conclusão do mapeamento da bactéria Xanthomonas citri, responsável pelo cancro cítrico, um genoma duas vezes maior que o da Xylella. Até o final de 2001, esperam concluir os mapeamentos da cana-de-açúcar (80 mil genes já foram decifrados), do câncer humano, também em parceria com o Instituto Ludwig, e da leifsonia, uma bactéria que ataca os canaviais. Além disso, receberam patrocínio do Departamento de Agricultura americano para desenvolver, no Brasil, o genoma de uma bactéria “prima” da Xylella, que arrasa vinhedos na Califórnia. O mapeamento de tais organismos é o maior passo para a descoberta dos agentes capazes de combater e controlar pragas. “Cada genoma mapeado encurta em pelo menos dez anos o tempo necessário para encontrar soluções para o problema”, explica Perez.
Humor – Os dois pesquisadores do ano lidam com estudos sofisticados, mas estão longe do perfil de cientistas “malucos e solitários”, ao estilo do Professor Pardal. Isso porque passam mais tempo elaborando orçamentos, contatando investidores e administrando equipes do que enfurnados em laboratórios. Perez, segundo amigos e familiares, consegue trabalhar com temas complexos sem perder o bom humor. “Nunca vi o Fernando usar suas realizações para exercer a vaidade”, testemunha a pedagoga Cecília, sua mulher. Filho de um professor de filosofia e de uma pianista, Perez nasceu em Santos (SP) e é torcedor fanático do Peixe. “O jogo da minha vida foi uma vitória de 4 a 1 sobre o Corinthians, em 1858”, lembra. É um bagunceiro leve, daqueles que espalham jornais e revistas pelo chão. Costuma ouvir as composições de Bach no último volume. “Se alguém reclama que a música está atrapalhando a conversa, ele ironiza: ‘Não é hora de encerrar o papo?’”, entrega Gabriel, o filho caçula, estudante de biologia. Rodrigo, o mais velho, é médico. Perez aprendeu a tocar alguns prelúdios e fugas do compositor com a mãe. A paixão por Bach é exercitada nos finais de semana, em seu piano.
O colega Reinach, igualmente amante da música clássica, não se arriscaria a tocar uma nota. Seria mais fácil vê-lo pilotando seu computador com acesso rápido à internet ou lendo algum livro sobre a história da ciência. Há mais de duas décadas, sua paixão é decifrar e enfileirar as letrinhas do código genético humano e, mais recentemente, de pragas que atacam as plantas. Paulistano, filho do engenheiro alemão Klaus Reinach, ex-presidente da Sabesp, e da artista plástica Lygia, ele sempre foi dado a experimentos. Em sua casa, no bairro do Butantã, criava dezenas de ramsters e pintava as bocas dos peixes de seu aquário com violeta genciana, para livrá-los de aftas. Em 1973, quando um professor da USP apareceu no Colégio Santa Cruz falando de uma nova ciência, a biologia molecular, viu que a brincadeira de manipular a natureza poderia virar profissão. Passou no vestibular para medicina e biologia e, para surpresa da família, optou pela segunda. “Ficamos chocados, mas ele explicou que, melhor do que tratar as pessoas, seria descobrir o que as faz adoecer”, conta a mãe.
Decidido a desvendar o funcionamento das células, Reinach acabou indo trabalhar no laboratório de biologia molecular da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, onde foi descoberta a estrutura do DNA. Em 1990, já lecionando na USP, criou, em sociedade com o irmão Marcos, o laboratório Genomic, pioneiro em testes de verificação de paternidade. Realizando mais de dois mil exames por ano, a R$ 900 cada um, a empresa resolveu inúmeras polêmicas envolvendo gente famosa. Das ações de verificação de paternidade contra Ayrton Senna, Pelé e Paulo Maluf à identificação da orelha do cantor Wellington, irmão de Zezé Di Camargo. “Quando começamos, ninguém sabia sequer o que era DNA; que diria sequenciar um genoma”, comenta Reinach.
Rede – Com uma carreira brilhante, amparada em patrocínios de entidades como o CNPq e Fundação Rockfeller, há anos ele sabe da importância de investir em pesquisa. Por isso, foi nomeado presidente do comitê que julgava os projetos de biologia entregues à Fapesp. Com o tempo, pôde identificar as melhores cabeças na área e assim teve a idéia de criar a rede Onsa. A experiência abriu caminho para outro negócio milionário. Em parceria com o ex-presidente do Banco Central, Pérsio Arida, Reinach montou um sistema de suporte de internet, nos moldes do organizado pela agência paulista. Os milhares de computadores da rede Comdominio são alugados para empresas que querem unir pessoas em vários pontos do País.
Sotaque inglês |
O mapeamento genético da Xylella fastidiosa é um feito cem por cento brasileiro. Mas, vez por outra, nos laboratórios, as conversas sobre fórmulas e teoremas ganhavam um leve sotaque inglês. |